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Tudo o que vi, ouvi e senti na expedição ao mercado do meu bairro

 No outro dia fui ao dentista. O que há uns tempos seria uma afirmação banal e até enfadonha é neste momento o início de uma aventura que todos querem ouvir. Prova disso mesmo é o entusiasmo com que a minha família me pede para contar vezes sem conta tudo o que vi e senti na hora e meia que estive fora de casa. Pacientemente, mostro-lhes as centenas de fotografias que tirei e os vídeos que fiz enquanto lhes relato as experiências por que passei. “O que é aquilo?”, perguntam-me amiúde. “É o motorista do autocarro que me transportou até ao consultório e ali ao lado, um pouco desfocado, está um passageiro.” “E aquilo?” “É a pessoa que fez a destartarização dos meus dentes”, respondo-lhes, gozando de antemão com o ar de estupefacção que fazem. Por vezes o meu filho afasta-se de mim e, embalado pelas minhas palavras, olha absorto para a rua, sonhando um dia, também ele, apanhar um transporte público e sair na próxima paragem ou, quem sabe, ir a pé até ao parque infantil. A experiência do

Guião para as presidenciais de 2031

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- Boa noite. Bem-vindos ao debate mais aguardado das eleições presidenciais de 2031. O sorteio ditou que a primeira pergunta seja feita ao candidato Silva Pais. No seu programa está escrito que quer ser o presidente dos portugueses que ganham mais de 20 mil euros mensais, o que tem causado alguma polémica. Defende mesmo o que está lá escrito? - Antes de mais, boa noite. Sim, obviamente que defendo esse ponto como todos os outros pontos que estão no meu programa. Repare, o presidente deve representar o máximo possível de portugueses de bem que estão no último escalão do IRS, sem fazer discriminações abusivas entre portugueses ricos e portugueses milionários. Por que razão um português que ganha apenas 20 mil euros tem de ser menos do que outro que aufere um ordenado mensal de 100 mil euros? Não se trata de… - É uma vergonha! Como é que é possível vir para aqui fazer esse tipo de afirmações levianas que… - Senhor Francisco Machado, peço que fale na sua vez e deixe o candidato Silva

A pandemia da lisonja

Nós, os portugueses, o melhor povo do mundo, começamos a desconfiar de que não somos mesmo o melhor povo do mundo. Pior do que isso: ser o melhor povo do mundo já não nos diz nada. É o que acontece quando se repete 50 vezes a mesma palavra – perde o seu significado e torna-se um som desprovido de sentido. À força de sermos constantemente apodados de melhor povo do mundo, o orgulho pátrio caiu na indiferença. Até já se ouve pelos cafés vários portugueses a lamuriarem-se de que enquanto formos o melhor povo do mundo isto não vai a lado nenhum.  A culpa foi da pandemia que trouxe consigo um surto de lisonja como não se via desde 2012, quando Vítor Gaspar afirmou no Parlamento que o povo português era “o melhor povo do mundo e o melhor activo de Portugal”. Estas declarações foram feitas nos tempos da troika, num período de grande turbulência social e económica. É provável que D. José I no dia 2 de Novembro de 1755 também tenha dito que o maior terramoto do século XVIII só podia atingi

Fazer praia em tempos de coronavírus

Numa manhã de Verão do ano de 2020, José K. foi surpreendido no seu quarto por três indivíduos que exigiram ir à praia. Durante alguns segundos ainda teve a esperança de que fossem funcionários da justiça que o quisessem torturar. Foi por isso com horror que descobriu que se tratava da sua mulher e dos seus dois filhos. Não havia recurso jurídico, alçapão legal ou suborno que o pudesse safar. Durante o pequeno-almoço começou mentalmente a fazer a lista do que precisavam de levar: fatos de banho, toalhas, chapéu-de-sol, corta vento, colchão insuflável, braçadeiras, protector solar, fraldas, uma chucha e outras três de substituição, toalhitas, marmita com a comida do bebé, marmita com a comida do filho mais velho, sandes para si e para a mulher, garrafas de água, um pack de cerveja, muda de roupa para o bebé, brinquedos para o bebé, carrinho do bebé, ovo do bebé, bola, raquetes, uma ou duas revistas… Quando percebeu que nem o mais potente computador de Silicon Valley teria memória sufi

O mundo em tempos de Dovid-16

Ninguém estava preparado para isto. Na verdade, ninguém acreditava que isto pudesse vir a acontecer. Tratava-se de uma distopia própria dos livros e filmes de ficção científica. Quem encarava esta possibilidade como plausível tinha como resposta uma casquinada céptica e um menear de cabeça desdenhoso. Mesmo as mesas redondas dos especialistas consideravam pouco verosímil que um acontecimento desta magnitude viesse a concretizar-se. Semelhantes cenários, diziam, estavam definitivamente engavetados em passados obscuros, em que as sociedades não eram tão sofisticadas e informadas como as nossas. Foi por isso com temor e estupefacção que assistimos à eleição de Donald Trump a 9 de Novembro de 2016, acontecimento baptizado por Dovid-16. Com as nossas certezas feitas em ruínas, vivemos desde então tempos de pânico e absoluta incerteza, incapazes de prever com segurança como será, ou melhor, se haverá dia seguinte. Até hoje ainda não se encontrou um antídoto capaz de desafiar a sua virulê

O heroísmo em tempos de coronavírus

Já passou mais de um mês de confinamento social voluntário. Continuamos todos cívica e responsavelmente por casa, o que nos tem valido loas permanentes do primeiro-ministro e do Presidente da República. Somos apelidados de heróis, mas confesso que é um epíteto que me causa estranheza. Nunca pensei que estar o dia todo de pantufas, resistindo estoicamente à pérfida tentação de ir à rua tomar um café, viesse a ser considerado um alto serviço prestado à pátria. Na vida além-túmulo, os nossos egrégios avós que combateram nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial estarão certamente orgulhosos destes novos heróis do lar. Estou ansioso por um dia contar às gerações vindouras as agruras por que passei durante a pandemia. Têm sido semanas de terrível incerteza, devoradas pela indecisão angustiante de não saber que novo filme escolher na Netflix ou que livro ler a seguir.  A culpa é das bandas-desenhadas da Marvel que nunca abordaram este tipo de heroísmo. Em vez do Homem Aranha ou do Hulk

Sai um prato de tofu com ovo a cavalo

O reitor Amílcar Falcão anunciou que a partir de 2020 as cantinas da Universidade de Coimbra deixarão de ter carne de vaca na ementa. O anúncio provocou de imediato uma saraivada de críticas e vozes indignadas. É normal. Se tivesse dito que iria subir as propinas para dez mil euros ou incendiar a biblioteca com a tuna académica lá dentro, provavelmente não teria corrido tanta tinta, mas quando se toca num dos esteios da identidade nacional, aí os portugueses sublevam-se. Pelo direito ao tornedó de novilho são capazes de invadir a Argentina. Como escreveu Miguel Esteves Cardoso na crónica Almoço, “ em matéria de afectividade, os portugueses guardam aos víveres uma ternura igual àquela que outros povos destinam ao Bambi. O português não chora tanto ao ver morrer a mãe do Bambi como choraria se ela estivesse estufada em vinho tinto com batatinhas a murro.” Devido à sua actualidade, é um exercício inútil procurar antever o impacto que esta medida terá no futuro. Por essa razão, vou f