Requiem por um antigo trabalhador

E pronto. Estou novamente desempregado. Os trâmites seguidos foram iguais a tantos outros. O contrato terminou e não havia folga orçamental para mais. Arrumei a minha secretária. Organizei a papelada para quem vier a seguir. Passei dados, códigos e passwords de acesso. Despedi-me. Distribuí beijos e abraços. Agradeceram o meu empenho e zelo profissional. Retribuí os encómios e desejei felicidades futuras. Não fiz promessas de visitar quem fica. Entreguei a chave do escritório e guardei o porta-chaves no bolso. Disse adeus. Fechei a porta. Fim.

Agora tenho os dias por minha conta. O tempo à mão de semear. Os cafés preguiçosos nas esplanadas que for encontrando. Os pores-do-sol ao alcance da minha vontade. Confesso que a sensação não é nova. Já fora assim uma outra vez num passado não muito remoto. O desemprego tem sido para mim uma espécie de Páscoa: acaba sempre por vir, mas nunca sei bem quando. Só lamento que as comparações entre ambos os termos fiquem por aqui. Afinal, Jesus Cristo teve a vida bem mais facilitada do que eu, porque limitou-se a ser crucificado e morto com uma lança no peito, pormenor que ele resolveu com uma ressurreição em grande estilo ao terceiro dia. Gostaria de saber como é que se desenvencilhava se, em vez de o terem pregado na cruz, os romanos o tivessem despedido do cargo de carpinteiro da Galileia e o obrigassem a procurar trabalho na Lusitânia. Provavelmente estaria agora, de senha em riste, no Centro de Emprego de Paços de Ferreira à espera de ser atendido. Portanto, não me venham cá com a conversa do sofrimento do Messias.

Para ser justo, em parte sou o culpado por estar desempregado. Não soube parar de estudar quando devia e agora tenho excesso de habilitações. Ou seja, tenho uma licenciatura a mais. É verdade que é a única, mas é o suficiente para me fazer tropeçar sempre que tento galgar a escadaria do futuro. Reconheço que aprendi os ensinamentos do Sócrates errado e que não tive a mão sapiente de um Relvas que me indicasse qual o caminho a trilhar após a conclusão do 12º ano. Agora é tarde de mais para me penitenciar.

Não há que desanimar, contudo. A experiência diz-me que este é o momento certo para aprofundar os conhecimentos adquiridos no meu último emprego. Depois, invisto parte das minhas poupanças em duas ou três formações para enfrentar o mercado de trabalho armado de competência até aos dentes. Acto contínuo, consolido o conhecimento de idiomas estrangeiros, aumento a minha cultura geral e desenvolvo capacidades extra-curriculares. Ou, em bom português, desenvolvo as minhas soft skills. É igualmente importante elaborar um novo currículo. De preferência enxuto, criativo e agradável à leitura para que os recrutadores fiquem bem impressionados. Envio o currículo e aguardo. Quando receber um email ou um telefonema, estudo com afinco a visão, missão e os valores da empresa e recapitulo em voz alta virtudes e defeitos próprios. Visto uma roupa bonita, a descair para o formal, esfrego o Búfalo pelo couro dos sapatos e o pente pelos cabelos e mostro toda a minha experiência, competência e qualidades ao longo da entrevista. Ou, em bom português, mostro todo o meu expertise, know how e skills ao longo da entrevista. Se não der certo, envio novos currículos. Aguardo. Vou a outra entrevista. Volto a enviar currículos e candidaturas. Espontâneas e planeadas. E também cartas. De apresentação e de motivação. Vou de novo a uma entrevista. Repito. Insisto. Espero. Desespero. Volta a tentar. Mudo de estratégia. Caio. Levanto-me. No final, tenho a certeza de que vou ser contratado e remunerado com um generoso salário a oscilar entre os 600 e 700 euros. Ou seja, exactamente o mesmo valor que recebia no anterior trabalho. E também no anterior. E, curiosamente, no anterior ao anterior. E também no meu início de carreira. Provavelmente, o Pedro Lamy deve ter uma sensação parecida à minha quando participa nas 24 horas Le Mans.

Estar desempregado é, acima de tudo, ter um foco de luz a incidir em permanência sobre mim. Na próxima vez que sair de casa, tenho a certeza de que um amigo ou um familiar vai carpir palavras fúnebres sobre a minha triste situação. “Que chatice…”, “isto está difícil”; “e agora o que vais fazer?” ou “já procuraste lá fora?”, vão ser algumas das muitas expressões litúrgicas com que vão untar o meu corpo ainda morno do anterior trabalho, mas que aos poucos vai arrefecendo à medida que se sucederem, como espectros bolorentos, os dias frios do desemprego.

Em suma, parti do mundo dos trabalhadores. Estou na outra margem, a acenar para ti. Sei que por aí o tempo é um bem escasso, mas espero que um dia pegues num escopro e graves a seguinte epígrafe sobre o meu túmulo de ex-empregado: “Aqui jaz um antigo trabalhador. Foi diligente no acatamento e cumprimento dos desígnios dos patrões que amavelmente o contrataram. Partiu com o sentimento de dever cumprido. Paz à sua alma na Terra dos Desempregados. XXXI-I –MMXIII”

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