A pandemia da lisonja

Nós, os portugueses, o melhor povo do mundo, começamos a desconfiar de que não somos mesmo o melhor povo do mundo. Pior do que isso: ser o melhor povo do mundo já não nos diz nada. É o que acontece quando se repete 50 vezes a mesma palavra – perde o seu significado e torna-se um som desprovido de sentido. À força de sermos constantemente apodados de melhor povo do mundo, o orgulho pátrio caiu na indiferença. Até já se ouve pelos cafés vários portugueses a lamuriarem-se de que enquanto formos o melhor povo do mundo isto não vai a lado nenhum. 

A culpa foi da pandemia que trouxe consigo um surto de lisonja como não se via desde 2012, quando Vítor Gaspar afirmou no Parlamento que o povo português era “o melhor povo do mundo e o melhor activo de Portugal”. Estas declarações foram feitas nos tempos da troika, num período de grande turbulência social e económica. É provável que D. José I no dia 2 de Novembro de 1755 também tenha dito que o maior terramoto do século XVIII só podia atingir o melhor povo do mundo. Seria refrescante que na próxima crise os nossos governantes dissessem o seguinte: “A nossa economia entrou em colapso, o desemprego atingiu níveis históricos e mais de metade do país está a ser devastada por incêndios incontroláveis. É nestes momentos difíceis que temos a certeza de que não podemos confiar nem contar convosco, porque vocês, portugueses, são o pior povo do mundo.”

Durante o confinamento, a lisonja foi diária. Teceram-se loas ao nosso confinamento. Ninguém confinava como nós. Os estrangeiros invejavam a maneira como nos confinávamos. Provámos ao mundo que somos os melhores a confinar no sofá. Infelizmente, o desconfinamento não está a correr tão bem. O número de novos infectados com o coronavírus aumentou e vários países estão a restringir a entrada dos portugueses. Esta situação fez-nos suspeitar de que afinal podemos não ser o melhor povo do mundo. Estamos por isso desconfinados e desconfiados. Será que somos os melhores em casa, mas apenas razoáveis na rua? Se assim for, talvez o problema se possa resolver se se construir um telhado que vá do Minho ao Algarve e se se espalhar pelo país alguns milhares de galos de Barcelos, estatuetas de Nossa Senhora, sofás com rendas de bilros por cima e televisões em cada bairro. Se tivermos a sensação de que estamos permanentemente no conforto do nosso lar, talvez voltemos a ser o que sempre fomos – o melhor povo do mundo. 

Mais do que o aumento de novos casos, no entanto, o maior golpe à nossa auto-estima foi desferido por J. K. Rowling. Basta que um estrangeiro faça um pequeno elogio a Portugal ou que tenha uma relação, por mais obscura que seja, connosco para que o orgulho pátrio transborde além da Taprobana. Quem não se recorda da profunda comoção que causou a notícia de que Barack Obama tinha um cão de água português? Foi por isso com indignação que soubemos que a escritora inglesa afinal não se inspirou na livraria Lello para criar as famosas escadas de madeira da escola de Hogwarts. Desde o Ultimato de 1890 que não sofríamos uma desfeita destas por parte do nosso mais antigo aliado. O vitupério não seria tão grave se se tratasse de um candelabro, agora a escadaria inteira da prestigiada escola de Hogwarts? Pelo menos poderia referir que a madeira usada veio do Pinhal de Leiria ou que tinha sido feita por marceneiros de Paços de Ferreira. Como é que se atreve a ultrajar desta maneira o melhor povo do mundo? Mais do que desculpas, devíamos exigir à escritora que escrevesse um novo livro que terminasse com o Harry Potter a cear na Torre dos Clérigos com o Lord Voldemort umas tripas à moda do Porto e umas migas alentejanas, enquanto ouviam a tuna académica da Universidade de Coimbra. 

Felizmente, a nossa auto-estima recuperou com escolha de Portugal para receber os jogos da Liga dos Campeões. Era o mínimo que a UEFA poderia fazer, uma vez que nenhum outro país reúne as mesmas condições para organizar a prova. Imaginem que no solo do melhor povo do mundo o melhor jogador do mundo marca o golo decisivo na final. Creio que o nosso ego ficará tão grande que o Presidente da República declarará unilateralmente a independência da Terra e a criação do planeta Portugal. A partir desse momento, o povo português deixará de ser o melhor do mundo e passará a ser o melhor do universo. Também já não era sem tempo.

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