Fazer praia em tempos de coronavírus

Numa manhã de Verão do ano de 2020, José K. foi surpreendido no seu quarto por três indivíduos que exigiram ir à praia. Durante alguns segundos ainda teve a esperança de que fossem funcionários da justiça que o quisessem torturar. Foi por isso com horror que descobriu que se tratava da sua mulher e dos seus dois filhos. Não havia recurso jurídico, alçapão legal ou suborno que o pudesse safar.

Durante o pequeno-almoço começou mentalmente a fazer a lista do que precisavam de levar: fatos de banho, toalhas, chapéu-de-sol, corta vento, colchão insuflável, braçadeiras, protector solar, fraldas, uma chucha e outras três de substituição, toalhitas, marmita com a comida do bebé, marmita com a comida do filho mais velho, sandes para si e para a mulher, garrafas de água, um pack de cerveja, muda de roupa para o bebé, brinquedos para o bebé, carrinho do bebé, ovo do bebé, bola, raquetes, uma ou duas revistas… Quando percebeu que nem o mais potente computador de Silicon Valley teria memória suficiente para elencar tudo o que precisavam, José K. lamentou o facto de viver no rés-do-chão. Perante a logística ciclópica que tinha pela frente, a preparação do desembarque da Normandia assemelhava-se a uma excursão sénior organizada pelo Inatel.

Escassas três horas depois entraram no carro, prontos para um dia de praia. Ainda mal tinham feito a primeira curva e já estavam a voltar atrás. Alguém se esquecera das máscaras. A mulher acusou José K. que, por sua vez, acusou o filho de ser um estouvanado e nunca prestar atenção ao que lhe diziam que, por sua vez, não desgrudou os olhos do smartphone.

Após cinco quilómetros, entraram numa estação de serviço para uma mudança de fralda. Como as casas de banho públicas estavam fechadas por questões de saúde pública, tiveram de utilizar uma mesa da esplanada sob um sol abrasador, o que mereceu estridentes protestos do bebé. Já o filho mais velho fez o que tinha a fazer atrás de uma árvore. Bagas de suor escorriam pela testa de José K. que instintivamente passou a mão pela cara afogueada. Só quando entrou no carro é que se apercebeu do perigo a que se expusera. Em pânico clamou pelo desinfectante, mas ninguém o tinha. Parou então na berma da estrada e revolteou os sacos e as malas milimetricamente arrumados no porta-bagagens. Pelo meio entornou parte da marmita do bebé, o que fez a mulher vociferar em alta grita. Perdido por cem, perdido por mil, José K. limitou-se a comer uma sandes de carne assada acompanhada por uma cerveja morna. Se tivesse contaminado, ao menos que fosse de barriga cheia. Para não dar o braço a torcer, a mulher juntou-se ao repasto e o filho mais velho reclamou que também queria comer, sendo logo de seguida secundado pelo choro faminto do bebé.

Com o mar na linha do horizonte, foram a uma farmácia comprar, enfim, o desinfectante. Talvez devido ao excesso de calor ou às curvas e contracurvas da estrada, o bebé aproveitou a paragem para bolsar para as costas do banco da frente. A mulher de José K. aspergiu parte do desinfectante para limpar a sujidade, o que deixou o carro com um cheiro semelhante ao Bairro Alto nos sábados à noite. O bebé caiu de imediato num sono profundo, mas o filho mais velho continuou a queixar-se que ainda sentia o fedor a leite azedo, só se calando sob a ameaça de um tabefe.

No parque de estacionamento, José K. consultou a app para saber a lotação do areal. O semáforo estava vermelho, por isso entraram no apoio de praia para fazer tempo. Como as mesas e cadeiras tinham acabado de ser desinfectadas, foram obrigados a deixar tudo o que traziam à entrada para evitar a contaminação do espaço. Além disso, o regulamento obrigava os clientes a descalçarem-se, a desinfectar as mãos durante 20 segundos e a medir a temperatura duas vezes com um intervalo de 10 minutos. Depois de cumprir todas estas diligências e com a paciência a entrar em estado de calamidade, José K. dirigiu-se resolutamente ao balcão para pedir uma cerveja, chocando com a empregada. Mais do que os copos partidos, foi a quebra da distância de um metro e meio de segurança que exaltou os ânimos, havendo mesmo quem exigisse prisão imediata para o responsável por aquele atentado à saúde pública.

Acossado e com o orgulho ferido, José K. escapuliu-se como pôde do estabelecimento, procurando o respaldo da família. Visivelmente enciumada com o excesso de proximidade com a empregada, a mulher censurou azedamente o seu comportamento. Acusou-o de ser um mau exemplo para os filhos, sobretudo para o mais velho, que aproveitara a espera para entabular conversa com uma rapariga, quebrando a cada frase o distanciamento obrigatório em dez centímetros.

Entretanto a cor do semáforo digital mudara para verde, o que foi um lenitivo sobre o clima tenso que se abatera sobre a família. Em feliz algazarra dirigiram-se para o areal, mas um fiscal da DGS barrou-lhes o caminho. Exigiu que lhe mostrassem o que traziam consigo. Pelas novas regras, explicou-lhes, estavam interditas actividades desportivas com duas ou mais pessoas, pelo que tinham de ir pôr as raquetes e a bola ao carro. Como ninguém se queria voluntariar, acusando-se uns aos outros pela ideia absurda de trazer semelhantes objectos em plena pandemia, voltaram os quatro para trás. Iam num silêncio amuado, remoendo razões e raivas, quando o bebé acordou mal-humorado do torpor alcoólico. Na bagageira mudaram-lhe a fralda e aproveitaram para lhe dar de comida. O filho mais velho queixou-se então de que estava a ficar frio e que já não queria ir para a praia, o que desta vez lhe valeu mesmo um tabefe na cara.

Estendido no areal e com a restante família devidamente instalada e besuntada de protector, José K. fechou enfim os olhos para sentir os raios de sol tíbios que ainda dardejavam na linha do horizonte.  A urgência de uma sirene fê-lo erguer-se estremunhado. Dois agentes da polícia marítima aproximaram-se em passo estugado e exigiram que saíssem da praia, pois ia-se proceder à desinfecção do areal.  Num acesso de desespero, José K. despejou o frasco do desinfectante sobre si e tentou imolar-se pelo fogo, tendo sido prontamente impedido pela mulher.

Durante o caminho de regresso, não se ouviu palavra ou choro. Assim que entrou em casa, José K. caiu extenuado na cama. Nem a mulher nem o filho se atreveram a censurá-lo por não ter tirado os chinelos nem a roupa, como exigiam as regras de saúde pública.

Na manhã seguinte ninguém voltou a pedir-lhe para ir à praia. Nem em nenhum outro dia desse Verão de 2020.

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