Tudo o que vi, ouvi e senti na expedição ao mercado do meu bairro

 No outro dia fui ao dentista. O que há uns tempos seria uma afirmação banal e até enfadonha é neste momento o início de uma aventura que todos querem ouvir. Prova disso mesmo é o entusiasmo com que a minha família me pede para contar vezes sem conta tudo o que vi e senti na hora e meia que estive fora de casa. Pacientemente, mostro-lhes as centenas de fotografias que tirei e os vídeos que fiz enquanto lhes relato as experiências por que passei. “O que é aquilo?”, perguntam-me amiúde. “É o motorista do autocarro que me transportou até ao consultório e ali ao lado, um pouco desfocado, está um passageiro.” “E aquilo?” “É a pessoa que fez a destartarização dos meus dentes”, respondo-lhes, gozando de antemão com o ar de estupefacção que fazem. Por vezes o meu filho afasta-se de mim e, embalado pelas minhas palavras, olha absorto para a rua, sonhando um dia, também ele, apanhar um transporte público e sair na próxima paragem ou, quem sabe, ir a pé até ao parque infantil.

A experiência do confinamento tem redefinido a nossa ideia de viagem e de distância. Qualquer pessoa que cometa actualmente a proeza de atravessar dois quarteirões, transforma-se de imediato num Hermenegildo Capelo. Em breve os escaparates das livrarias estarão cheios de títulos como “De casa à peixaria a pé”, “Como eu percorri o meu bairro e voltei para casa em pouco menos de meia hora” ou “A minha jornada à padaria – memórias de uma expedição em tempos de pandemia”.

As agências de viagem têm de adaptar as suas ofertas ao novo quadro mental das pessoas. Já ninguém quer saber do deserto de Atacama ou da Terra do Fogo. Tudo o que pedem é uma hora fora de casa. Uma ida à mercearia do bairro ao lado é suficiente. Se o pacote incluir gel desinfectante e máscara descartável ainda melhor. Apanhariam o autocarro às dez, depois comprariam, um a um, verduras e iam-se embora. No regresso trocariam opiniões sobre o que viram. “Isto aqui é muito bonito, mas não há nada como os pepinos da minha frutaria”, diriam. Além disso, os catálogos trocariam as imagens de praias paradisíacas ou de montanhas nevadas por prateleiras de supermercado ou de um take-away acompanhados do seguinte texto: “A poucos passos de um centro de testagem covid, este belo talho é capaz de surpreender o mais prevenido dos viajantes. Descubra os encantos da picanha e aprecie a frescura do cachaço de porco. Aventure-se connosco e deixe-se envolver no mundo maravilhoso das carnes que existe no bairro ao lado do seu. Tudo isto por apenas 10€ com oferta de uma zaragatoa”. Se não tivesse ido ao dentista, não deixaria escapar esta oportunidade.

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