Guião para as presidenciais de 2031

- Boa noite. Bem-vindos ao debate mais aguardado das eleições presidenciais de 2031. O sorteio ditou que a primeira pergunta seja feita ao candidato Silva Pais. No seu programa está escrito que quer ser o presidente dos portugueses que ganham mais de 20 mil euros mensais, o que tem causado alguma polémica. Defende mesmo o que está lá escrito?

- Antes de mais, boa noite. Sim, obviamente que defendo esse ponto como todos os outros pontos que estão no meu programa. Repare, o presidente deve representar o máximo possível de portugueses de bem que estão no último escalão do IRS, sem fazer discriminações abusivas entre portugueses ricos e portugueses milionários. Por que razão um português que ganha apenas 20 mil euros tem de ser menos do que outro que aufere um ordenado mensal de 100 mil euros? Não se trata de…

- É uma vergonha! Como é que é possível vir para aqui fazer esse tipo de afirmações levianas que…

- Senhor Francisco Machado, peço que fale na sua vez e deixe o candidato Silva Pais terminar o seu raciocínio.

- É normal que o meu adversário não goste que se digam estas coisas, porque ele faz parte do sistema instalado no país, o que o torna num obstáculo a uma sociedade mais justa e inclusiva.

- Vamos então dar a palavra ao presidente e agora candidato Francisco Machado. Peço-lhe um comentário às palavras que acabou de ouvir.

- Olhe, eu apenas lhe digo isto: fico estupefacto ao ouvir o meu adversário. O doutor Silva Pais, por quem nutria alguma simpatia e até, devo confessar, alguma afinidade ideológica, vir aqui falar de um país mais justo e inclusivo… é de bradar aos céus. Depois fica muito ofendido quando lhe dizem nas ruas que é um democrata e um igualitário.

- Eu não lhe admito que…

-Mas tem de admitir, doutor Silva Pais! Tem de admitir! Diga de uma vez por todas que o que quer é a democracia. Não tenha medo! Admita-o de uma vez em vez de andar sempre com rodeios!

- O presidente e agora candidato Francisco Machado não quer, portanto, ser o português de todos os portugueses que recebem mensalmente mais de 20 mil euros?

 - Olhe, ainda bem que me faz essa pergunta, porque permite demarcar-me desde já do meu adversário. Aquilo que eu quero continuar a representar neste meu segundo mandato são os portugueses que ganham mais de meio milhão de euros por mês, têm casa na Quinta do Lago e motorista privado. Esses são os verdadeiros portugueses, os que trabalham, os que ajudam todos os dias o país a reerguer-se.

- O que é que vê de errado na proposta do seu adversário?

- O que vejo de errado? Vejo tudo de errado! Vejo tudo de errado! Algum dia eu iria representar portugueses que ganham 20 mil euros? Os portugueses que ganham esse valor por mês são aqueles que andam atrás dos vales de desconto e das promoções dos supermercados para poupar dinheiro. Representam o país preguiçoso e de mão estendida que eu não quero. Além disso, tenho provas de que alguns desses portugueses compram produtos made in China e roupa contrafeita a ciganos! Algum dia eu…

- Desculpe, mas o que está a dizer é pura demagogia! Os ciganos foram erradicados do nosso país há mais de cinco anos. Nas nossas feiras já não se ouve Gipsy Kings e não há qualquer peça de roupa à venda da Ribok, da Ardidas, da Like ou mesmo malas da Luiz Fuiton. A prova de que já não temos ciganos no nosso país é que nos últimos anos se registou uma quebra enorme na venda de sapos de loiça.

- Mas continua a haver ciganos em Espanha e o doutor Silva Pais sabe-o muito bem! Escusa de atirar areia para os olhos dos portugueses milionários que não os engana! O que o senhor quer é pôr os portugueses todos a ouvir flamenco e a viver de subsídios!

- Pelo amor de Deus, nem lhe fica bem esse tipo de acusações! O problema neste país é que quando se quer ajudar e defender 5% da população somos logo chamados de democratas, anti-racistas, defensores do pluralismo e da liberdade de expressão… Com este tipo de insultos torna-se muito difícil ter um debate sereno em que se troquem argumentos de forma saudável. Eu não posso fazer qualquer acção de campanha sem ter um grupo de arruaceiros a chamar-me democrata. Ainda no outro dia em Setúbal atiraram-me a Constituição da III República à cabeça, imagine-se, e o senhor não condenou em nenhum momento esse ataque vil.

- E sabe por que o fizeram doutor Silva Pais? Sabe? Porque o que o senhor quer é o regresso da III República! Admita-o de uma vez por todas!

- Penso que ficou claro o que vos separa neste ponto. Vamos então avançar e falar da questão dos refugiados. Outro ponto polémico do programa de Silva Pais é a defesa da integração dos refugiados que, na sua opinião, chegam artilhados com tecnologia em segunda mão. Segundo o seu programa, e passo a citar, “quem chega às nossas praias maravilhosas de areias douradas frequentadas apenas por portugueses de bem sem tecnologia 6G é porque está claramente a passar dificuldades no seu país de origem e por isso merece ser ajudado e integrado na nossa sociedade”. Não acha que defender isto é dar razão aos que o acusam de defender uma sociedade humanista e inclusiva?

- Não, de maneira nenhuma. Permita-me que a corrija, porque a afirmação de que há refugiados a chegar com tecnologia em segunda mão às nossas praias não é uma opinião, mas um facto. Há vários estudos que comprovam isso mesmo. Mas voltando à sua questão… repare, uma sociedade envelhecida como a nossa precisa de gente de outros países…

- Como é que é possível… isso é humanismo, doutor Silva Pais! Isso é defender as minorias, doutor Silva Pais! Olhe e sabe o que é que isso é também? É a ressurreição da esquerda amiga dos coitadinhos e dos desgraçadinhos que chegam em iates de luxo às nossas costas e querem passar à frente dos nossos portugueses de bem nas nossas maravilhosas clínicas privadas! Não me tinha lembrado de dizer isto, mas agora já está dito. Também perante os disparates que o senhor diz, é difícil ficar calado.

- Deixe-me acabar se faz favor!

- Isto é um debate…

- É um debate, mas o senhor tem de ouvir primeiro.

- Peço-lhe então que conclua o seu raciocínio Silva Pais e que seja o mais breve possível porque o nosso tempo está a esgotar-se.

- Como lhe estava a dizer, o país enfrenta um gravíssimo inverno demográfico e precisamos de reverter esta situação o mais rapidamente possível. Por isso, todos os refugiados e imigrantes que…

- Ai agora não são apenas os refugiados? Também quer receber os imigrantes? E porque não receber o Médio Oriente e África inteira no nosso país?

- Como estava a dizer… todos os refugiados e imigrantes que cheguem com tecnologia de segunda mão e façam prova de que nos seus países de origem recebiam o equivalente a 20 mil euros mensais devem ser integrados na nossa sociedade e fazer parte da elite. Sabe, eu sou cristão e…

- Eu também sou cristão…

- …e acredito na reconversão das pessoas que viviam bastante bem. Se as ajudarmos, tenho a certeza de que podem viver ainda melhor.

- Presidente e agora candidato Francisco Machado tem dois minutos para responder.

- Eu sinceramente acho que o doutor Silva Pais vive noutro planeta. Sinceramente… Onde é que ele vai buscar a ideia mirabolante de que há refugiados a chegar com tecnologia em segunda mão ao nosso país? O que eu vejo todos os dias nas notícias é refugiados que morrem afogados ao tentar chegar às nossas praias por terem os bolsos cheios de ouro. O que esta gente quer é beneficiar da nossa educação, da nossa saúde e perverter a nossa cultura oito vezes secular e isso eu nunca permitirei. Eu defenderei a alma lusitana com todas as minhas forças da contaminação social e cultural.

- Olhe, ao contrário de si eu preparo-me para os debates e trouxe comigo algumas fotografias de marroquinos e libaneses a chegarem às nossas costas com smartphones em segunda mão. Está a ver ali a marca e o modelo que aquela criança tem nas mãos? Não dá para ver bem porque ela tem os dedos roxos sobre o ecrã, mas percebe-se que se trata de um modelo que já não é vendido no nosso país há mais de cinco anos. Depois o senhor diz que há iates cheios de refugiados a chegar todos os dias à nossa costa. É falso. Este estudo aqui demonstra claramente que tem havido uma diminuição no número de refugiados que chegam ao nosso país.

- Olhe, doutor Silva Pais, eu sei que o senhor está mal nas sondagens, mas isso não lhe dá o direito de vir para aqui com factos e estudos. Isto não é o vale tudo para ganhar votos. Mas essa sua estratégia demonstra bem o que o senhor quer e que se resume numa palavra: democracia! O senhor é um democrata!

- Lá voltamos nós ao argumento do costume…

- Então mas já agora diga lá de onde retirou todos esses dados. Diga lá…

- Tirei do Facebook, do Twitter e do Instagram.

- Cá está! Não precisa de dizer mais nada. Foi às redes sociais, portanto. Toda a gente sabe que as redes sociais degeneraram há alguns anos e são actualmente um esgoto de factos, bom senso e opiniões sensatas. Não lhe preciso de dizer que são um ninho infestado de democratas, sobretudo quando o senhor admite que é aí que vai buscar esses estudos. E depois fica muito ofendido quando lhe chamam de democrata! Vergonha, doutor Silva Pais! Vergonha!

- Meus senhores, o tempo está a terminar. Pedia agora que cada um fizesse uma pergunta. Começo por si, Silva Pais.

- Bem, o senhor tem dito que pretende ser apenas o presidente dos portugueses que ganham acima de meio milhão de euros. Mas como é do conhecimento público, têm saído notícias que dão conta de que a sua mulher ganha apenas 5 mil euros por mês. O que é que lhe irá acontecer caso seja reeleito? Expulsa-a do país?

- Vir com questões pessoais para este debate é lamentável… O que eu lhe posso responder é que essas notícias são falsas e… olhe… sabe de onde é que elas vêm? Do ninho de democratas que infesta as redes sociais que o senhor tanto aprecia e que passam a vida a difamar-me.

- Agora é sua vez de fazer a sua pergunta.

- A minha pergunta é muito simples. Como se tem visto ao longo de toda a campanha e também neste debate, o doutor Silva Pais fica muito ofendido quando lhe chamam de democrata. No entanto, sempre que lhe pedem para se demarcar do regime da Dinamarca nunca o faz. Por isso, gostava de lhe dar novamente essa oportunidade de, aqui e agora, doutor Silva Pais, se demarcar de uma vez por todas do regime dinamarquês. Um regime onde talvez a esta hora todas as pessoas, independentemente dos seus rendimentos ou da sua etnia, estejam nos cafés a criticar de forma igual e democrática o governo ou mesmo a participar em eleições livres.

 - Pode responder Silva Pais.

- Bem, o meu foco tem sido desde o início o nosso país e os portugueses. É isso que me interessa debater e é isso que irei fazer no tempo que resta de campanha. Quero um país melhor para os portugueses ricos. É esse o meu foco e por isso pouco me interessa o que se passa lá fora. Como já tive oportunidade de dizer variadíssimas vezes, a Dinamarca não tem o modelo de sociedade que eu defendo, mas o seu governo está no direito de impor o regime autoritário que quiser.

- Eu acho inacreditável o que o senhor acabou de dizer…

- Francisco Machado temos de terminar.

- Eu só quero sublinhar que chamar autoritário ao governo da Dinamarca e dizer que foi ele que impôs o regime é de uma cegueira ideológica inenarrável. Na Dinamarca todas as pessoas votam livremente no seu governo e o seu silêncio sobre isto é mais eloquente de qualquer palavra, doutor Silva Pais! Porque aquilo que verdadeiramente move o senhor é a democracia. O senhor é um democrata! Eu sei isso e os portugueses milionários também o sabem e é por isso que vão dar-me a vitória no próximo dia 30 de Janeiro.

- Muito obrigado, meus senhores. Não perca já a seguir a um curto intervalo as reacções dos portugueses residentes na villa da Quinta da Marinha.

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