Da polivalência comercial

Portugal padece há vários anos de um grave problema. Trata-se de uma maleita bastante perigosa que dá pelo nome de polivalência comercial. Todos nós já tivemos contacto com ela e, de uma maneira ou de outra, já sofremos na pele os seus efeitos. Por essa razão, é inacreditável como tem escapado até hoje à análise dos analistas e às críticas dos críticos.

Apesar de ser desnecessária, aqui fica, para os mais distraídos, a definição de polivalência comercial aprovada pela academia: é um fenómeno que consiste na junção de valências comerciais díspares num espaço relativamente exíguo. Para que percebam melhor, ao pé de minha casa existe um estabelecimento chamado Grelha Alentejana que se intitula, através de vistosos letreiros, da seguinte maneira: “Café (Vinhos e Petiscos) – Pastelaria – Mini-Mercado – Garrafeira – Charcutaria – Produtos Alentejanos – Whiskis – Bebidas Esperituosas” (assim mesmo, com e). Perante tamanha versatilidade, poder-se-á pensar que se trata de uma grande superfície comercial, com patinadores e corredores a perder de vista. Na verdade, é pouco maior do que a sala de estar da maioria das pessoas, com a diferença de ter garrafas de vinho por toda a parte em alegre convívio com enchidos, queijos e bolos. No entanto, o principal problema é o seguinte: o que é que se pede num café-pastelaria-mini-mercado-garrafeira-charcutaria? Da última vez que lá entrei, acabei por pedir um galão traçado, um pão de Deus com migas e manteiga e encomendei 200 gramas de pastéis de nata cortados em fatias muito finas. Como é óbvio, estive três semanas seguidas com uma gastroenterite.

Infelizmente, o fenómeno tem alastrado a outras áreas comerciais. Às vezes, entro numa loja e fico com a sensação de que a Bertrand, a Toys’R’Us e a Papelaria Fernandes decidiram fundir-se num espaço do tamanho de uma casa de banho pública. É nestas alturas que a ASAE deveria entrar em acção, pondo na porta de cada um desses estabelecimentos um letreiro que avisasse os clientes para o perigo de derrocada, tal é a quantidade de livros, dossiers e bonecada que anexam cada centímetro quadrado disponível. Ainda no outro dia cometi a imprudência de ir a um desses locais e tropecei na perna de um urso cor-de-rosa gigante que estava à entrada, mas, por sorte, a minha queda foi amortecida por três caixas de puzzles de mil peças. Acontece que, com a atrapalhação, apoiei-me a uma estante para me levantar, o que fez com que a lombada do Guerra e Paz me caísse em cheio em cima do pescoço. Desde então, ando com um colar cervical e tenho várias peças de puzzle incrustadas no meu corpo. E tudo por causa da minha estúpida ideia de querer comprar um jornal numa banca-de-jornais-papelaria-livraria-loja-de-brinquedos-reprografia.

Não sei se esta denúncia dos perigos associados à polivalência comercial vai chegar a bom porto. Creio que não. Trata-se de um lobby demasiado forte, com tentáculos de norte a sul do país. Por isso, se é este, de facto, o caminho que se quer seguir, então pretendo que o fenómeno se alastre a outras áreas. Gostava, por exemplo, que um talho acumulasse as funções de um banco. Assim, além de levar para casa três bifes de vaca e 350 gramas de entremeada, pedia para investir meio quilo de carne picada em acções ou então que me fizessem uma aplicação financeira a longo prazo de quatro quilos de picanha. E porque não fundir uma peixaria com uma perfumaria, passando-se a chamar peixumaria? O cliente poderia experimentar, por exemplo, a nova fragrância de peixe-agulha enquanto encomendava dois quilos de robalo com odor a Hugo Boss. Enfim, novas oportunidades de negócio não faltam.

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