A reacção revoltada à recalibragem reformista do Governo

Como todos se recordam, a proposta de reindustrialização do país, avançada pelo ex-ministro Álvaro Santos Pereira, causou celeuma e nunca saiu da gaveta. Seguiu-se a requalificação dos funcionários públicos, que se enredou em polémicas sem fim. Mais recentemente, a recalibragem dos objectivos da Troika ficou encalhada em outros tantos pomos de discórdia. Em suma, parece-me evidente que as palavras com prefixo re- são, por esta altura, a principal frente de oposição ao Governo. Já toda a gente o percebeu, menos o PS, que era o que teria a ganhar mais com esta situação. Se assim não fosse, muito provavelmente o líder socialista já teria ido a uma conservatória do Registo Civil e trocado o nome para António José Resseguro. Seria, sem dúvida, a primeira medida bem sucedida de oposição a Passos Coelho.

Ao invés, o povo português, com a esperteza maldosa que o caracteriza, há muito que detectou este calcanhar de Aquiles. Assim, à reindustrialização, requalificação e recalibragem tem reagido, respectivamente, com repulsa, revolta e regurgitação. E, como se não bastasse, tem reivindicado a reposição dos subsídios retirados, a reestruturação da dívida e a reeleição de um novo Governo que reequilibre as contas públicas e reinvista na economia.

Por altivez ou desprezo pelas eleições, o primeiro-ministro continua alheado dos efeitos nefastos que as palavras com prefixo re- têm na popularidade do executivo. Caso contrário, durante o congresso do PSD teria evitado utilizar a palavra revisão para falar da necessidade de alterar a Constituição. O mais certo é que dentro de poucos dias haja reacções de repúdio e até quem relembre os chumbos do Tribunal para justificar o eventual ressabiamento de Passos Coelho em relação à lei fundamental. Receio que haja mesmo alguns remoques bem remordazes por parte de gente mais reguinga.

Também Paulo Portas, normalmente tão hábil no jogo político, tem sido reincidente no uso da palavra restauração, o que tem suscitado reservas quanto à sua sanidade mental. O emprego da palavra refundação para abordar a necessidade de reduzir os custos do estado social foi outro tiro no pé dado pelo vice-primeiro-ministro. Como seria de esperar, a maioria das pessoas não se ficou pelo mero protesto e pelo pedido de demissão. Preferiram, de forma refinada, reivindicar a sua renúncia e o fim do seu regabofe retórico.

Enquanto a esperada reeleição de um novo governo não chega, talvez se possa aproveitar o acervo de palavras que entrou no léxico político para renovar a língua portuguesa, sobretudo no que aos trava-línguas diz respeito. Na verdade, há muito que qualquer aluno da primária consegue dizer sem dificuldades de maior o estafado “o rato roeu a rolha do rei da Rússia”. É preciso inovar, fazer algo de diferente, mais de acordo com os tempos actuais, como “a requalificação recalibrada da reindustrialização resvalou na repulsa reivindicativa dos reformados revoltosos.” Ou então “a República reivindica a reposição retroactiva das reformas no relançamento real da retoma”.

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