Génesis da esquerda
No princípio, quando Deus criou os partidos, a política era
informe e vazia, as trevas cobriam a democracia e o espírito de Deus movia-se
sobre a superfície ideológica.
Deus disse: “Faça-se a esquerda”. E a esquerda foi feita.
Deus viu que a esquerda era boa e separou a esquerda da direita. Assim surgiu a
primeira divisão entre correntes políticas.
Deus disse: “Haja um partido para a esquerda e que esse partido seja o Comunista.” E assim aconteceu.
O Partido Comunista desenvolveu-se, mas um número cada vez
maior de pessoas começou a contestá-lo. Surgiram então as primeiras dissidências.
Deus não gostou e disse: “Reúnam-se os dissidentes que estão debaixo dos céus
num único lugar.” E assim surgiu o Bloco de Esquerda. E Deus viu que era bom coexistirem
dois partidos de esquerda.
Em breve, alguns bloquistas ficaram descontentes, tomando
como suas as dores da franja de eleitores que não se sentiam representados. Reivindicaram
então a criação de um novo partido. Deus concedeu e disse: “Rui Tavares, ergue-te,
sai do Bloco e cria o Livre.” E Deus viu que isto era bom.
Pouco tempo passou, no entanto, para que outros bloquistas
elevassem as suas vozes suplicantes a Deus. Pediam-Lhe que olhasse pelos
marginalizados da esquerda sem eira nem partido onde pudessem dar largas às
suas utopias. Deus ouviu-os e disse: “Joana Amaral crio-te a partir da costela
do Louçã para que formes sobre a terra o Juntos Podemos”. E Deus viu que isto
era, enfim, aceitável.
Ainda mal o Sol despontara, já novos queixumes eram
dirigidos contra Deus por se ter esquecido dos resquícios do eleitorado jovem e
urbano que se pastoreia entre o Bairro Alto e o Cais Sodré. Deus suspirou e
disse: “Então mas o vosso eleitorado é assim tão vasto e variegado que precise de
mais um partido? Daniel Oliveira ergue-te e cria lá um Manifesto 3D que seja
pela dignidade, democracia e desenvolvimento.” E Deus viu que isto era parvo.
Estava Deus ainda ferrado no sono quando a voz de Joana
Amaral lhe ceifou os sonhos. Lamentava-se que o Juntos Podemos estava mal
criado e que pretendia algo novo que representasse o eleitorado que é de
esquerda entre o lusco-fusco e o nascer da estrela da noite. Deus maldisse o
seu trabalho mas como era magnânimo cedeu: “Toma o Agir e agora não me chateies
que hoje tenho de povoar as águas com monstros marinhos e encher os ares de
passarada.”
No dia seguinte, Ana Drago apareceu gemebunda aos pés de
Deus, que lhe perguntou: “O que tens Ana?” Ao que ela Lhe respondeu: “Quero
sair do Bloco e criar uma plataforma política de
alternativa concreta e com capacidade de influenciar a governação ancorada à
esquerda.” “Ana, sabes bem que a abstracção nunca foi o meu forte. Eu
prefiro criar serras, mares e animais. Não preferes que eu te dê uma praia com coqueiros ou vale verdejante com um riacho lá no fundo cheio de trutas?”, sugeriu-lhe Deus. Num acesso de histerismo, Ana esperneou
enquanto gritava que também queria uma plataforma só para ela. Deus suspirou,
encolheu os ombros e deu-lhe uma Plataforma que baptizou de Tempo de Avançar. E
foi assim que Deus se iniciou na criação de bugigangas. “A continuar assim
ainda acabo como almocreve a vender tralha de aldeia em aldeia”, desabafou.
Pensava então Deus que ia ter
descanso, quando novas e estridentes vozes reboaram pelas serras e outeiros que criara, assustando os animais alados que se afastavam esparvoados com tais
clamores. Eram proto dissidentes do Bloco que queriam ter o seu manifesto,
plataforma, alternativa, iniciativa, fogacho, impulso ou vontade que
representasse os eleitores de esquerda, fossem eles do lote 13 do Bairro da
Conceição no Porto ou eleitores de esquerda entre as sete e as oito da manhã ou
então eleitores que se tornam de esquerda quando atingem um determinado patamar
de riqueza em que é de bom-tom mostrar que se tem preocupações sociais.
Então, o Senhor Deus olhou
para eles e disse: “Porque continuam a pedir-me mais partidos e não estão
satisfeitos com a minha Obra, maldita sejam as eleições por vossa causa. Delas
só arrancarão votos, e à custa de penosos trabalhos, a dois por cento dos
eleitores. Ganharão cada voto a expensas de muito sacrifício, enquanto muitos
outros fugirão para a direita. Comerão o pão amargo que têm amassado até que
voltem a unir-se. Lembrem-se que vós sois insignificantes e à insignificância
sereis votados.”
Comentários
Enviar um comentário