I like, logo existe
Na manhã gelada do dia 15 de Fevereiro de 2014, Lucie deixou a filha à
entrada da escola preparatória Franklin Roosevelt, situada nos arredores de
Bowling Green, cidade americana do estado de Kentucky. O nevão que caíra de
madrugada tornara as estradas praticamente intransitáveis, obrigando-a a
conduzir mais devagar do que o habitual. Por esse motivo, Elisabeth estava
cerca de 10 minutos atrasada para a aula de Geografia, algo que detestava que
acontecesse. A partir dessa manhã, no entanto, a sua costumeira e obstinada
inflexibilidade em relação a faltas de pontualidade iria mudar drasticamente.
A poucos metros da sala de aula, o silêncio do longo corredor foi
cortado pelo barulho de duas rajadas de metralhadora misturadas com gritos de
pânico e o tilintar de vidros partidos. Elisabeth ficou alguns segundos
paralisada, em choque. “Não percebi logo de que lado viera o som e não
sabia o que fazer”, conta. Uma nova saraivada de tiros mais intensa fê-la
reagir e começar a correr na direcção da saída. Antes de dobrar o corredor,
olhou para trás e viu dois indivíduos vestidos de negro a entrarem na sala onde
decorria a aula de matemática. “Se tivesse ficado parada mais uns segundos tinha sido morta”, recorda Elisabeth com a voz trémula e lágrimas grossas a rolarem
pela sua face adolescente, onde as olheiras fundas denunciam noites em claro. O
barulho que se seguiu das AK47 enquanto se precipitava para a saída, ainda hoje
a atormenta. “Qualquer som mais intenso como o estouro de um foguete deixa-me
num estado de ansiedade incontrolável.” Desde essa fatídica manhã de Fevereiro
que Elisabeth, agora com 16 anos, tem acompanhamento psicológico três vezes por
semana.
Durante cerca de meia hora os dois autores do massacre puderam dar
largas à sua orgia sanguinária. Entraram em cada sala de aula e mataram a
sangue frio alunos e professores. A polícia, que entretanto cercara a escola,
abateu um dos indivíduos no laboratório de química, enquanto o outro se
refugiou na cantina, onde cometeu suicídio com um tiro na cabeça, depois de
gritar algumas palavras imperceptíveis em árabe.
No total, foram mortos 53 alunos, 12 professores e 11 funcionários da
escola Franklin Roosevelt. Foi o mais mortífero ataque com armas de fogo no
estado de Kentucky e um dos piores em todo o país. Os dois autores do massacre
eram iraquianos e tinham entrado nos Estados Unidos da América um mês antes.
Abdul Abdeslam, 34 anos, e Ali Harib, 32 anos, estavam a viver em casa de Ahmed
Hassan, primo do primeiro. Apesar de sempre ter negado qualquer envolvimento na
preparação do ataque, ficou provado que Ahmed terá ajudado na compra das duas
AK47 utilizadas no massacre, estando por esse motivo a cumprir uma pena de 60
anos de prisão.
Segundo as informações disponibilizadas pelo FBI, Abdul e Ali ter-se-ão
conhecido na cidade iraquiana de Fallujah, onde se converteram ao islão radical
e muito provavelmente aderido ao Daesh. Em Dezembro de 2013 compraram bilhetes
de avião para os Estados Unidos da América com o intuito de procurarem trabalho
no país. No mês seguinte aterraram no aeroporto de Bowling Green e ficaram
hospedados em casa de Ahmed Hassan que vivia na cidade desde 2010 e era funcionário
da cadeia de fast food KFC há dois anos. Ambos tinham passaporte e toda a documentação necessária
para viajarem. Por esse motivo, nunca levantaram suspeitas aos serviços
de segurança, o que reacendeu o debate sobre a necessidade de introduzir
medidas mais restritivas em relação à entrada no país de cidadãos vindos do
Médio Oriente.
Apesar da dimensão desta tragédia, a comunicação social nunca a
noticiou. Nem uma linha foi escrita sobre o massacre, nem uma simples
referência, nem uma nota de rodapé no jornal da noite. Nada. A razão para este
silêncio cúmplice foi que (e agora peço que o leitor contenha a sua indignação)
o massacre de Bowling Green nunca aconteceu. Trata-se de um argumento pífio e
que tresanda a ranço. Sim, nada do que foi relatado nos últimos parágrafos
aconteceu no mundo real, mas desde quando é que isso é um critério para não se
escrever uma notícia?
Quando a conselheira presidencial Kellyanne Conway revelou este
massacre numa entrevista a uma televisão norte-americana, o papel dos
jornalistas não era investigar a sua veracidade no mundo real. O que deveriam
ter feito era esquadrinhar as redes sociais e ver se havia pessoas suficientes
a acreditar nele e a partilhá-lo pelos amigos virtuais. O acontecimento
incendiou as redes sociais? Quantos likes teve? Já é viral? Quantas pessoas
estão dispostas a defendê-lo e a insultar todos os outros que não acreditam
nele? Estas são as perguntas que devem presidir qualquer investigação
jornalística que se preze no século XXI.
Caso o massacre de Bowling Green não tivesse posto as redes
sociais a arder, então sim, os jornalistas tinham toda a legitimidade para ter escrito
algo como: “O massacre de Bowling Green não passa de um triste embuste da
conselheira presidencial com propósitos populistas. Basta um rápido passar de
olhos pelas redes sociais para constatar que este massacre teve apenas 57 likes
e 23 partilhas, números claramente insuficientes para o tornar um facto. Kellyanne
Conway é a prova de que não inventa factos quem quer, mas sim quem tem as
competências necessárias para tal. Perante tamanha demonstração de amadorismo,
não resta outra alternativa a Donald Trump que não seja demiti-la.”
No mundo da pós-verdade, o que aconteceu mesmo passou a ter um papel
secundário em relação às minhas crenças. Se eu acredito em algo que é
legitimado e defendido por um vasto número de utilizadores nas redes sociais,
logo existe. Infelizmente muitos jornalistas continuam a sobrevalorizar
acontecimentos que aconteceram mesmo em detrimento dos acontecimentos em que eu
acredito ou que gostava que tivessem acontecido. É por essa razão que nunca
vieram falar comigo, apesar de ser o único português que ganhou dez Ligas dos
Campeões consecutivas e que descobriu em simultâneo a cura para a sida e o pé
de atleta numa saída à noite com os amigos. Os 350 mil likes e as 500 mil
partilhas que estes factos têm nas redes sociais atestam a sua veracidade.
Depois admiram-se que as pessoas não comprem jornais.
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