A clandestinidade é quem mais ordena

Na Ria Formosa começaram recentemente as demolições de várias casas construídas ilegalmente em zonas de risco. Como seria de esperar, os moradores têm protestado contra a decisão, o que tem sido frutífero: do número inicial de 369 construções a abater passou-se para 57. Esta redução é uma decisão acertada por parte do Ministério do Ambiente, porque mais do que nunca é preciso manter a qualidade elevada das obras clandestinas em Portugal. Provavelmente muitas das casas que vão ser demolidas pagavam uma mensalidade para ter televisão por cabo ou, pior ainda, tinham contrato em dia com a EDP, o que obviamente dá má fama aos verdadeiros clandestinos. Se é para andar a pactuar com situações regularizadas e em conformidade com a lei, então mais vale ficarem sem casa e abandonarem a clandestinidade de vez.

A luta dos moradores, contudo, não tem esmorecido e nos últimos tempos apresentaram um argumento de peso. Segundo eles, as construções clandestinas contribuem para a protecção do habitat do camaleão. A estocada argumentativa final veio do presidente da Câmara de Olhão, António Pina, que curiosamente também tem uma casa clandestina na Ria Formosa. De acordo com o autarca, o animal localiza-se “predominantemente nas árvores e arbustos existentes junto às habitações”, logo devem ser preservadas para que a fauna e flora subsistam. Perante esta explicação cristalina e cientificamente irrefutável, só por ignorância e má vontade é que as demolições irão avante.

Como todos sabem, foi a inexistência de obras clandestinas no período jurássico que levou à extinção dos dinossauros. Se houvesse alguns bairros ilegais, tinham-se abrigado no seu interior e nos arbustos situados nas imediações aquando da queda do meteorito e, ainda hoje, andavam por aí. A própria Quercus devia olhar para o caso de sucesso do camaleão na Ria Formosa e replicá-lo noutros locais. Na serra da Malcata, por exemplo, é evidente que o lince está praticamente extinto porque sente a falta de habitações clandestinas feitas em zinco ou alumínio que lhe animem os dias. Com tantas árvores e tanto verde, o animal sente-se aborrecido e prefere não dar continuidade à espécie.

Outro argumento insofismável apresentado pelo buliçoso presidente da Câmara de Olhão é que as construções ilegais são “uma conquista de Abril”. É inegável que tão ou mais importante que a liberdade, o desejo de viver em clandestinidade foi decisivo na Revolução de 1974. Naquela manhã de Abril, quantos e quantos portugueses se abraçaram em êxtase, enquanto gritavam: “Finalmente vou poder construir uma casa clandestina na Ria Formosa! Obrigado Salgueiro Maia!”

Estranhamente os historiadores, cancioneiros, poetas e artistas em geral têm ignorado o papel essencial que a aspiração do povo à clandestinidade teve no 25 de Abril. Lembro-me sempre disso quando leio o poema “As portas que Abril abriu” de Ary dos Santos. Logo para começar, sinto que o título está algo incompleto. Parece-me que o vate deveria ter optado por algo como “As portas clandestinas com acabamentos em alumínio que Abril abriu”. Depois podia e devia ter incluído no corpo do poema alguns versos que exprimissem o desejo colectivo de ter uma casa ilegal numa zona de risco, como por exemplo:

De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
um clandestino que sorriu
uma casa ilegal que se construísse
um mamarracho em zona protegida que ruiu
um autarca espertalhão que seguiu
o que o interesse pessoal lhe predisse
e entre alumínios zinco
armações em ferro chapas
puxadas eléctricas antenas
uma nação que enterrava
a sua vasta e única beleza
na construção que a fez escrava
da sua própria pobreza!

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