O heroísmo em tempos de coronavírus
Já passou mais de um mês de confinamento social voluntário. Continuamos todos cívica e responsavelmente por casa, o que nos tem valido loas permanentes do primeiro-ministro e do Presidente da República. Somos apelidados de heróis, mas confesso que é um epíteto que me causa estranheza. Nunca pensei que estar o dia todo de pantufas, resistindo estoicamente à pérfida tentação de ir à rua tomar um café, viesse a ser considerado um alto serviço prestado à pátria. Na vida além-túmulo, os nossos egrégios avós que combateram nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial estarão certamente orgulhosos destes novos heróis do lar. Estou ansioso por um dia contar às gerações vindouras as agruras por que passei durante a pandemia. Têm sido semanas de terrível incerteza, devoradas pela indecisão angustiante de não saber que novo filme escolher na Netflix ou que livro ler a seguir.
A culpa é das bandas-desenhadas da Marvel que nunca abordaram este tipo de heroísmo. Em vez do Homem Aranha ou do Hulk, Stan Lee devia ter criado o Homem-Caseiro. O seu dia-a-dia não seria ocupado com minudências como salvar o mundo de vilões sinistros, mas sim a manter a dispensa forrada com rolos de papel-higiénico e a desinfectar com álcool as mãos da sua família de meia em meia hora. Na maior parte do tempo seria um banal pai de família que se dedicaria com zelo às tarefas domésticas. Contudo, quando a sua filha tentasse escapulir-se de casa para ir ter com o namorado, vestiria às escondidas na casa-de-banho o roupão aos quadrados e o pijama de flanela e calçaria umas pantufas quentinhas de lã de ovelha. Após uma épica discussão doméstica, conseguiria derrotar a insolência da filha e mandá-la valentemente para o quarto. Sem perder tempo, entraria em todos os sites de compras online para açambarcar a produção da Renova para os próximos anos.
A sua Némesis seria obviamente a Super-Galdéria. Com os seus lúbricos convites para jantar fora ou ir ao cinema, tentaria contaminá-lo com germes que poderiam acirrar a sua bronquite asmática crónica e levá-lo para a unidade de cuidados intensivos. Com a máscara descartável FFP3 devidamente posta, o Homem-Caseiro iria então pôr cobro aos seus logros. Depois de desinfectar as mãos tentaria introduzir uma zaragatoa na garganta da Super-Galdéria para recolher fluidos que lhe permitissem fazer o teste de despistagem de vírus contagiosos. Ela, no entanto, esquivar-se-ia sempre, procurando abraçá-lo e beijá-lo. “Os teus agentes infeciosos nunca entrarão no meu organismo!”, gritar-lhe-ia o Homem-Caseiro. “Eu só quero que ganhes imunidade”, responder-lhe-ia insidiosamente a Super-Galdéria. A eterna luta entre a desinfecção e o contágio continuaria sempre, mantendo o mundo décadas a fio dentro de casa na incerteza de quem seria o vencedor.
Isto sim são histórias. Têm ao mesmo tempo aventura e higiene. É o que precisamos nos tempos que correm e não de super-heróis que esguichem teias de aranha. Além de sujarem tudo, muito provavelmente nem sequer foram desinfectadas antes de serem utilizadas.
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