O mundo em tempos de Dovid-16

Ninguém estava preparado para isto. Na verdade, ninguém acreditava que isto pudesse vir a acontecer. Tratava-se de uma distopia própria dos livros e filmes de ficção científica. Quem encarava esta possibilidade como plausível tinha como resposta uma casquinada céptica e um menear de cabeça desdenhoso. Mesmo as mesas redondas dos especialistas consideravam pouco verosímil que um acontecimento desta magnitude viesse a concretizar-se. Semelhantes cenários, diziam, estavam definitivamente engavetados em passados obscuros, em que as sociedades não eram tão sofisticadas e informadas como as nossas. Foi por isso com temor e estupefacção que assistimos à eleição de Donald Trump a 9 de Novembro de 2016, acontecimento baptizado por Dovid-16. Com as nossas certezas feitas em ruínas, vivemos desde então tempos de pânico e absoluta incerteza, incapazes de prever com segurança como será, ou melhor, se haverá dia seguinte.

Até hoje ainda não se encontrou um antídoto capaz de desafiar a sua virulência. O bom senso, o equilíbrio e a racionalidade têm-se manifestado totalmente ineficazes para debelar ou pelo menos atenuar os seus efeitos. O seu comportamento ilógico e imprevisível torna inútil qualquer estratégia gizada pelas autoridades de saúde pública – não há estado de emergência ou cerca sanitária que o contenha. Além disso, é bastante contagioso e com uma grande capacidade de mutação genética. Basta atentar ao número de países por onde alastraram os sucedâneos da Dovid-16.

Regra geral, os sintomas associados são uma tendência irresistível para simplificar problemas complexos e responsabilizar minorias, como os ciganos, ou outros países pelos problemas que afectam o hospedeiro. Ao mesmo tempo que se verifica uma rejeição dos factos, o organismo desenvolve uma forte dependência de tweets, posts, insta stories e afins como canais preferenciais para soltar a sua incontinência verbal. Ninguém está a salvo. É preciso ter muito cuidado, porque mesmo pessoas aparentemente saudáveis podem ser infectadas. Numa fase inicial, a Dovid-16 manifesta-se em frases como “os políticos são todos iguais” ou “são uma cambada de gatunos que querem roubar o povo honesto e trabalhador”. Nestes casos é essencial dar de imediato um banho de realidade à pessoa infectada e deixá-la convalescer durante alguns dias. Se se verificar o agudizar dos sintomas, então deve-se considerar o caso como perdido e manter daí em diante o distanciamento social, preferencialmente de vários quilómetros.

Os epidemiologistas ainda não sabem por quanto tempo a Dovid-16 irá alastrar. Pensava-se que não sobreviveria ao calor, mas os humores meteorológicos não têm qualquer efeito sobre si. Alguns acreditam que a sua curva de crescimento atingiu entretanto o pico  com a sugestão de se injectar desinfectante e de se usar raios ultravioleta para eliminar a Covid-19. Terá sido este o Evereste do disparate e da ignorância da Dovid-16 a partir do qual se descerá inevitavelmente na direcção do bom senso?

Pode ser que sim, mas para alguns é demasiado tarde, porque decidiram seguir a mezinha do presidente americano e, surpreendentemente, foram parar às urgências. Infelizmente foi o meu caso. Sem me aperceber fui contagiado e, quando dei por mim, estava a injectar 30mg de Neoblanc lixívia. E nem sequer estava contaminado com a Covid-19, o que demonstra como a Dovid-16 afecta o discernimento. Estive uma semana no hospital e agora estou proibido de me aproximar do armário das limpezas cá de casa. A meio da noite acordo suado, a ressacar por uma mísera linha de Cif Lava Tudo Madeiras, umas pastilhas de Calgonit ou, nos momentos mais difíceis, por um discurso do André Ventura.

Neste momento já ganhei imunidade às palavras de Trump. Reconheço que são totalmente disparatadas. Não sei como é que alguma vez acreditei no que ele diz. Agora só sigo as ideias de grandes estadistas, como Alexander Lukashenko ou Jair Bolsonaro. Ainda ontem nadei no esgoto, bebi vodka e conduzi tractores para evitar ser contagiado pela Covid-19. Senti-me rejuvenescido. Não há bicho que me pegue. Tirando talvez o vírus da estupidez, cuja cura continua por descobrir. No dia em que isso aconteça temo que a espécie humana acabe.

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