Tira já o curso em Estudos da Cereja segundo o método Luís Freitas Lobo

Por iniciativa da Câmara Municipal do Fundão, a cereja vai à Assembleia da República no dia 14 de Junho. Espera-se um discurso duro. Além das habituais queixas contra as aves, que continuam impunemente a bicar a sua pele, o fruto não deixará passar a oportunidade de denunciar a forma generalista e desleixada como é referido nas mercearias, supermercados e lojas de conveniência.

Na verdade, quem está atento certamente já reparou nas diferenças de tratamento escandalosas, se não mesmo obscenas, entre a cereja e outros produtos. Quando peço um vinho, por exemplo, o empregado espera que eu especifique o meu pedido: é tinto, branco, verde, frisado, das planícies alentejanas, do douro vinhateiro, da península de Setúbal, da casta aragonesa, da casta syrah... Enfim, há uma profusão de escolhas a fazer antes de optar, regra geral, pelo mais barato da lista. Acto contínuo, segue-se toda uma mise-en-scène que vai desde a abertura da garrafa à degustação, passando pela poesia de rótulo, onde, entre outros aspectos, fico a saber que o bouquet é vigoroso e complexo, exalando frutos vermelhos e tâmaras do sudeste paquistanês.

Com o pão passa-se o mesmo. Entre a viana e o casqueiro alentejano há um vasto manancial de perguntas a responder antes da escolha. A farinha é de trigo ou de mistura? Qual deles é feito em forno de lenha? Qual das côdeas é mais macia para os dentes do meu avô? Se o Shakespeare fosse vivo, provavelmente a grande questão que atormentaria Hamlet seria entre escolher ou não escolher o pão saloio em detrimento do pão tigre. No meu caso, face à evidente falta de estudos que me habilitem a tomar a opção mais acertada, há mais de dez anos que só como pão de forma.

Já no que toca à cereja, não há qualquer tipo de diferenciação. Ninguém no supermercado me pede para especificar a variedade que quero levar; ninguém filosofa em torno do estado de maturação e do calibre das Summit em comparação com as Earlise; ninguém arenga sobre as qualidades gustativas das Brooks; ninguém disserta sobre a consistência das polpas; ninguém discorre sobre o período de polinização necessário para o vingamento das Sweetheart… Regra geral, os empregados limitam-se a pegar indiferenciadamente no fruto e a despejá-lo, sem poesia, num vulgar saco de plástico.

Não há como negá-lo: a reputação das cerejas bateu no fundo. A situação é de tal maneira grave que muitas delas estão a ser empurradas para os caminhos degradantes da prostituição. Quantas não tenho eu visto sensualmente empilhadas em montras, alcoolizadas por licores adocicados, com estridentes vestidos rosa choque e fazendo-se tratar por Mon Chéri…    

É por isso que eu quero lançar um apelo a todos os que lêem este texto: sempre que vos apetecer a companhia de um Mon Chéri, lembrem-se que por baixo de toda aquela aparência lúbrica existe uma cereja com sentimentos que, por falta de opções, enveredou pela profissão mais antiga do mundo. Portanto, se tiverem um pingo de consciência social, levem antes para o vosso carro um Ferrero Rocher.

A este quadro, já de si escabroso, acresce o recente fenómeno dos pastéis de nata de cereja, que mais não são do que cerejas transformistas. Na verdade, assim que ouviram o Ministro Álvaro Santos Pereira dizer que ia franquear as portas da emigração aos pastéis de nata, muitas viram aí a oportunidade de conseguirem, finalmente, o desejado passaporte para uma vida mais digna e respeitável. Por isso, não se importam de se transformar num produto de pastelaria calórico e gorduroso, deixando para trás a sua singela existência de fruta fresca e saudável.

Para acabar de vez com esta situação tenebrosa, parece-me que é essencial criar o curso em Estudos da Cereja segundo o método Luís Freitas Lobo. Da mesma forma que o comentador desportivo transformou o futebol num fenómeno transdisciplinar, que se situa algures entre a cosmologia, a filosofia e a semiótica, os licenciados em Estudos da Cereja segundo o método Luís Freitas Lobo ficarão habilitados a encetar uma meticulosa análise comparativa das variedades e subtilezas do fruto, sublimando o imenso microcosmos poético contido na polpa, no pedúnculo, na acidez, no calibre, na polinização, etc. Posteriormente, deverão também dar formação em todos os supermercados e mercearias, para que os empregados não vendam Summit por Earlise aos clientes.

Se esta medida for implementada agora, dentro de quatro a cinco anos a cereja passará de um fruto indiferenciado e desconsiderado a um produto gourmet. Entre muitas outras vantagens que daí advirão, aponto a mais óbvia: os ladrões de cereja deixarão de existir.

De facto, com a licenciatura e as acções de formação em Estudos da Cereja segundo o método Luís Freitas Lobo, a partir de 2017 já ninguém contará aos amigos que ontem, ao final do dia, parou o carro na N18 e roubou meio quilo de cerejas antes de levar com um chumbo na perna. Em vez disso, passarão a haver furtivos gourmands de cereja, cujos relatos serão algo deste género: “Ontem, quando o sol caminhava para o seu ocaso, parei o carro na berma da sossegada N18 e degustei, calmamente, umas Hedelfingen já bastante consistentes para a época, em que se notava o predomínio da Summit e do Vendel na sua composição. Depois, enquanto perscrutava o rumorejar dos pinheiros nas quebradas da Gardunha, saboreei umas Earlise®Rivedal, cuja maturação ainda está longe do ponto óptimo, uma vez que a união da Garnet com a New Moon provoca uma certa adstringência nas papilas fungiformes. Nada que se compare, portanto, ao voluptuoso deleite que senti com as Burlat, cuja polpa carmesim se matiza em sápidos cambiantes gustativos, nos quais se nota a suave combinação da Brooks com a Stark Hardy Giant. Estava eu embebido neste profundo estudo comparativo, quando, já em pleno lusco-fusco, o proprietário do cerejal fez uma rápida transição de uma cerejeira para outra e esfacelou-me o gémeo esquerdo com a sua ergonómica caçadeira de canos cerrados. Por essa razão, terei de fazer uma interrupção na minha carreira de gourmand da cereja entre três a seis meses.”

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