Apontamentos para uma biografia irrevogável
A minha história começa aos oito meses de vida quando tomei a decisão irrevogável de não nascer. Preocupada, a parteira informou a administração que se reuniu de emergência para deliberar sobre um caso tão insólito. Seguiram-se horas de debate e ponderação, até que me ofereceram o cargo de vice gestor da maternidade. E foi assim, irrevogavelmente, que vim ao mundo numa tarde soalheira de Verão.
Quando entrei para a primária, os
meus colegas tiveram a desfaçatez de me porem à baliza durante os jogos
realizados no recreio. A justificação que deram foi que assim atrapalhava
menos. Melindrado, manifestei solenemente a minha vontade irrevogável de
abandonar a equipa. Algumas horas depois, estava a jogar a avançado e com a
braçadeira de capitão à volta do meu braço direito.
Um dia, enquanto cervejava alegremente
com os meus amigos, disse-lhes que as diferenças sociais e laborais entre homens
e mulheres me davam asco. Por essa razão, em solidariedade com a emancipação feminina, tomava
como irrevogável a minha intenção de me manter casto até ao fim dos meus dias.
A irrevogabilidade, no entanto, bateu-me à porta numa madrugada
fria de Inverno na forma da Josinete, alternadeira brasileira no prostíbulo A
Toca do Prazer. Anunciou-me que estava irrevogavelmente grávida de mim, o que
me levou a dar-lhe um irrevogável arraial de pancada, a pagar-lhe o desmancho e
a recambiá-la para a outra margem do Atlântico.
Terminado o secundário, entrei em
casa e anunciei, com o ar de quem carrega todos os problemas do mundo, a minha
vontade irrevogável de não prosseguir os estudos. A consternação abateu-se sobre
os meus pais, cujos olhos jorraram grossas lágrimas de dor rosto abaixo. Foi
pranto de pouca dura, contudo. Três dias depois, recebi uma carta do reitor da
Universidade Lusófona que, ao saber da minha decisão irrevogável, me atribuía o
grau de Mestre em
Ciências Políticas e Relações Internacionais com especialização
em Hermenêutica da Irrevogabilidade Legal.
A minha entrada no mundo do
trabalho foi dura. Andei longos meses aos caídos, desempregado, sem eira nem
beira. Germinou então em mim o impulso irrevogável de lutar até ao final dos
meus dias contra a classe política, os spin doctors e as eminências pardas que
gravitam à sua volta. Foi sem dúvida uma deliberação convincente, da qual me
lembrei várias vezes, com um sorriso sério nos lábios, enquanto espreitava pela
janela do meu gabinete de Ministro dos Negócios Estrangeiros
A meio do mandato, o
primeiro-ministro fez uma remodelação governativa que me desagradou. Da minha
afronta nasceu uma carta de despedimento irrevogável, o que me guindou, em
pouco mais de uma semana, ao cargo de vice primeiro-ministro.
Entretanto, o povo estava
descontente, expressando-se através de permanentes manifestações cada vez mais assanhadas.
Para o apaziguar, prometi que iria satisfazer, imediata e irrevogavelmente,
todas as reivindicações sociais, o que se traduziu numa irrevogável subida de
impostos e num não menos irrevogável corte de pensões.
Cerca de dois anos depois, um
rebate de consciência abriu-me os olhos para a podridão da política e das suas
relações insalubres com empresas cotadas em bolsa e com a alta finança. Por
coincidência, este episódio ocorreu em ano de eleições. Convoquei a comunicação
social e anunciei, com rosto severo e voz pesada, a minha decisão irrevogável
de renegar a todos os cargos públicos. De ora em diante, queria ter uma vida irrevogavelmente
mais tranquila e tempo para a família. Duas semanas depois, fui nomeado CEO da
maior construtora civil do país.
Fiz pontes, auto-estradas,
rotundas e viadutos durante uma década. Depois, decidi reformar-me com uma pensão
líquida de sete mil euros, não sem antes a ter recusado de forma irrevogável. Afirmei
que era tempo de, irrevogavelmente, descansar, o que se traduziu na elaboração
de constantes pareceres técnicos devidamente pagos.
Aos 80 anos, senti aproximar-se o
ocaso da vida. Uma tarde, durante a digestão de uma vasta posta mirandesa,
fechei os olhos e adormeci. Para sempre? Nem pensar – tratou-se de mais um
momento irrevogável. A morte manteve-me vivo e nomeou-me para seu braço direito
para que continue a encher a vida dos portugueses com irrevogabilidades até ao último
dia deste mundo. E diga-se, sem falsas modéstias, que é um trabalho que até faço
bem. Irrevogavelmente bem.
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