Um condomínio privado chamado futebol
Houve um
tempo em que o futebol era um desporto acessível ao denominado povo. Ligava-se
a televisão em casa e, espante-se, via-se a bola em sinal aberto. Felizmente esse
período de anarquia e balbúrdia acabou.
O primeiro
passo foi dado pelos canais por cabo que passaram a cobrar uma mensalidade a
quem quer ver um jogo. Mais tarde, alguns clubes criaram os seus próprios
canais e recentemente surgiu um novo operador que passou a deter os direitos
exclusivos de vários campeonatos nacionais e da Liga dos Campeões. Ou seja, o
futebol tornou-se um desporto pago não só para o espectador, mas também para o
telespectador, com a agravante para este de que é cada vez mais difícil saber
em que canal, ou melhor, em que plataforma passa o jogo e quanto é que terá de
pagar por ele. O argumento de que não se vai ao estádio porque se vê melhor na
televisão, cai assim por terra. Acredito que no futuro seja preciso entrar numa
associação secreta, doar a casa e passar por vários rituais de iniciação para
poder assistir, por exemplo, ao Tondela-Rio Ave.
Este processo
de restrição do acesso ao futebol às massas conheceu esta semana um novo desenvolvimento.
Onze dos maiores, perdão, mais ricos clubes europeus pretendem criar uma
superliga europeia a que se juntariam mais tarde outras cinco equipas, generosamente
convidadas pela corte. É de facto uma ideia indispensável para
separar a aristocracia da plebe futebolística. O Real Madrid deixará, por
exemplo, de perder o seu tempo e prestígio a defrontar equipas menores como o
Valladolid ou o Rayo Vallecano e o Manchester United não precisará mais de enlamear
o seu lustroso emblema em campos de terceira categoria como o do Bournemouth ou
do Reading.
Este
futebol-condomínio-privado servirá apenas para recreação das elites que no
final se irão lambuzar com a repartição dos milhões. Do lado de lá do muro,
fica a ralé futebolística, sem acesso ao maná da minoria e condenada a jogar
entre si em estádios vazios. É um castigo mais do que merecido para quem
apostou na formação ou na aquisição de jogadores em vez de se ter preocupado
com a contratação de um sheik do Qatar ou de um multimilionário obscuro da
Rússia que chutasse a liquidez do clube para a estratosfera e mais além, enquanto
se riria do fair-play financeiro.
Com esta
nova competição, espero que o acesso aos estádios passe também a ser mais
rigoroso. Apenas adeptos que apresentem rendimentos anuais superiores a um
milhão de euros deverão usufruir de um Bayern-Juventus na luxuosa Allianz Arena
ou a um PSG-Barcelona no sumptuoso Palácio dos Príncipes. Afinal não é qualquer
bolso que consegue perceber a complexidade de um fora-de-jogo ou aquele momento
em que a bola entra na baliza, designado por golo. Só europeus com rendimentos sediados
em offshores ou sauditas milionários, cuja tradição no futebol é por demais
conhecida, estão em condições financeiras de perceber esses termos técnicos.
Para o adepto comum resta-lhe seguir desportos mais plebeus, como o golfe. Em
vez das bancadas dos estádios, terá de contentar-se em ir para os greens entoar
cânticos, vibrar com um hole in one e, no final, discutir apaixonadamente junto
às roulottes de bifanas o mau estado do fairway ou a qualidade de execução do drive.
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