Desculpe, mas não me lembro

A minha avó, uma respeitável nonagenária, troca amiúde os nomes dos netos e dos bisnetos. Outras vezes anda numa roda-viva à procura das chaves de casa. Normalmente estão na mala ou nos bolsos do casaco, apesar de ela jurar que procurara aí vezes sem conta. São situações que a transtornam. Com o intuito de a animar, mostro-lhe as comissões parlamentares de inquérito para que veja como há pessoas neste país com metade da sua idade em muito pior situação. “Estás a ver? Tu pelo menos nunca te esqueceste de pagar o que devias ao senhor da mercearia”, digo-lhe. É remédio santo: não só se sente revitalizada como até promete uma dúzia de pai-nossos e ave-marias em honra de Nossa Senhora da Boa Memória se refrescar a cabeça daqueles senhores engravatados que desfilam pelo ecrã.

Não sei bem que fenómeno se passa nas comissões parlamentares de inquérito, mas talvez fosse bom mandar lá um geólogo para averiguar se no subsolo não passa um afluente do Letes, o rio do esquecimento. A última vítima de um ataque de amnésia foi o ex-governador do Banco de Portugal. Vítor Constâncio afirmou que não se recorda de ter autorizado a Joe Berardo um empréstimo junto da Caixa Geral de Depósitos no valor de 350 milhões de euros para comprar acções do Millenium BCP. Também Zeinal Bava foi vítima de múltiplos lapsos de memória quando instado a comentar os negócios que a PT fez com BES. Espero sinceramente que a indústria farmacêutica esteja já a trabalhar no lançamento do Memofante Comissões Parlamentares de Inquérito para acabar com este flagelo. Talvez a Pixar / Disney se inspire nestes casos e lance o filme "À procura do dinheiro dos contribuintes" em que um cardume de Dories tenta recordar-se das moscambilhas que fez no passado para reaver os milhões de euros perdidos do erário público.

Apenas Joe Berardo passou relativamente incólume a este surto de amnésia. Ao perceber que a sua memória não fora apagada, o empresário madeirense obviamente tomou a medida que se impunha: processou os deputados. Se é para ir à comissão parlamentar de inquérito e lembrar-se de tudo, então mais valia ter ficado em casa. Acho que todos deveriam seguir o seu exemplo. É uma afronta muito grande vê-lo recordar-se de episódios que achincalham os portugueses. Uma coisa é tomar-nos por parvos as vezes que quiser e ainda ser agraciado com o grau de comendador. Até aí está tudo bem. Outra é vangloriar-se desbragadamente disso e rir-se despudoradamente. Pensando bem, por vezes o esquecimento é mesmo uma bênção.

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