A ditadura do cliente Pingo Doce

Passou despercebida a campanha promocional que o Pingo Doce realizou no Dia do Trabalhador. É sempre assim. Preocupada que anda a discutir questões menores como o desemprego, a dependência do petróleo ou as alterações climáticas, a comunicação social não noticiou o que realmente interessa aos portugueses.

De facto, bem merecia algumas linhas de mediatismo o genial golpe de marketing do Grupo Soares dos Santos. Graças a ele, as pessoas conseguiram comprar num só dia os mantimentos suficientes para sobreviver a mais três mandatos de Pedro Passos Coelho e da Troika. Além disso, recriaram com um rigor invejável os acontecimentos ocorridos na cidade de Chicago em Maio de 1886. Quem não recordou a jornada de luta por melhores condições laborais na Praça Haymarket ao ver a jornada de luta pela posse do bacalhau seco nas lojas Pingo Doce? Quem não vislumbrou a reivindicação pelas oito horas de trabalho no protesto pelas oito horas de espera nas caixas dos supermercados? Quem não se lembrou das selváticas cargas policiais sobre os protestantes na carga selvática dos consumidores sobre a secção de produtos lácteos e derivados?

A genialidade desta promoção é de tal ordem que deveria ser aplicada à nossa democracia com carácter de urgência. Imaginem o que seria se os deputados recebessem um vale de desconto de 50 por cento cada vez que apresentassem uma boa ideia para o país. Aposto que em menos de um mês Passos Coelho se transformaria na nova Angela Merkel da Europa. Provavelmente, a presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves, passaria a fazer  o seguinte tipo de observações: “Senhor deputado Telmo Correia, a sua proposta é sem dúvida interessante, pelo que poderá comprar robalos a metade do preço na peixaria do Pingo Doce do Cartaxo durante a próxima semana.” Ou então, caso a intervenção ficasse aquém do esperado: “Senhor deputado Carlos Zorrinho, aquilo que disse não faz o menor sentido. Por essa razão, vejo-me obrigada a reter o vale de 50 por cento de desconto em produtos de higiene e limpeza no Pingo Doce de Estremoz. Talvez o ofereça ao deputado Luís Montenegro, porque parece que está a precisar de um avental novo.”

Em contraponto ao silêncio da comunicação social, levantou-se a voz do historiador Rui Ramos para fazer justiça à promoção do Pingo Doce. No artigo de opinião "A luta de classes foi às compras”, escreveu que “talvez as esquerdas não se devessem ter sentido tão feridas” com o que se passou no 1º de Maio. E justifica, recorrendo à obra A People's Tragedy, de Orlando Figes, sobre a Revolução Russa de 1917: "As massas revolucionárias tiveram outro grande incentivo, além das teorias de Lenine, para o assalto ao Palácio de Inverno, em São Petersburgo: a gigantesca adega dos czares, a maior do mundo. Quando os bolcheviques deram por isso, já a classe operária estava convertida à superioridade do Château d'Yquem, colheita de 1847 (50.000 euros a garrafa, hoje).” 

Perante isto, é de elementar justiça reconhecer que o Grupo Soares dos Santos mostrou, qual Che Guevara, o caminho mais directo para a revolução. Basta colocar meia tonelada de produtos de primeira necessidade dentro da Assembleia da República; depois, espalha-se o boato de que há descontos de 50 por cento num palácio localizado para os lados de São Bento. Num ápice, os portugueses tomarão conta do Parlamento, demonstrando que um carrinho de compras a transbordar tem maior capacidade mobilizadora que os cortes nos subsídios de Natal e de férias ou que os apelos à greve do líder da CGTP, Arménio Carlos. Quando esse dia chegar, começará não a ditadura do proletariado, mas a ditadura do cliente Pingo Doce, algo que a desleixada teoria marxista da história, indesculpavelmente, não conseguiu prever.

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