As cornadas que doem mesmo

Depois de terem ceifado a vida a um pastor em Setembro, os touros que campeiam livremente na aldeia de Segura, concelho de Idanha-a-Nova, voltaram a investir na semana passada. Desta vez foi um caçador que ficou gravemente ferido, com perfurações no pescoço, num dos pulmões e membros inferiores. Entretanto, não muito longe, mais precisamente em Vale Prazeres, vinte e duas ovelhas sucumbiram aos ataques de várias dezenas de abutres e grifos. Podia continuar a fazer o inventário de episódios semelhantes, no entanto, penso que a mensagem já terá passado: se há sítios em Portugal onde a vida ainda tem emoção e sabor, a Beira Baixa é claramente um deles.

Não é apenas a fruição de dias bem preenchidos que tornam aquela região especial, mas também a ausência de preocupações. Ali as pessoas levam uma vida feliz e suave, como o fluir de um regato de águas transparentes, em contraste flagrante com a austeridade granítica que reveste o resto do país. Veja-se o exemplo da aldeia de Segura: o maior receio dos seus habitantes é ser perfurado pelos cornos de animais de 800 quilos. É uma inquietação de somenos, ridícula até, sobretudo quando nos lembramos que a vasta maioria dos portugueses há mais de um ano que é estripada financeiramente pelas aves de rapina governativas, sem saber bem o motivo. De facto, é mais fácil encontrar uma explicação para o comportamento dos bovinos do que para o do Governo de Passos Coelho, o que tornam os ataques deste bem mais imprevisíveis e ilógicos. Por esse motivo, se tivesse a oportunidade de escolher, correria de braços abertos para a racionalidade da cornada taurina em detrimento da cornada executiva baseada na fé obscura das teorias económicas. É que nunca fui muito dado a superstições.

Quanto ao caso dos grifos e abutres, não é nada a que não estejamos habituados. Afinal, há muito que convivemos com uma das suas espécies, por sinal a mais letal: a agência de notação. Os seus ataques têm deixado pelo país um rasto de destruição de dimensão incomparavelmente superior ao que se verificou em Vale Prazeres. Por isso, tenho dificuldade em perceber a tristeza e revolta da pessoa que ficou sem parte do rebanho. Quem me dera um dia abrir o jornal e, em vez do habitual dilúvio de desgraças, ler as seguintes notícias: Goldman Sachs voltou a atacar o redil da senhora José Cândida, em Sortelha, matando seis cabeças de gado; Standard and Poor’s sobrevoou a courela de João Pica, em Amareleja, deixando 25 touros e um cão sem emprego nem subsídio de Natal; em Sever do Vouga, a Fitch baixou o rating das reses bravias do senhor Armando para o nível de lixo, o que provocou orneios de indignação. 

Enquanto as aves de rapina continuam impunemente a riscar os céus, os mais de 250 touros que andam a monte já têm o seu destino traçado: vão ser abatidos. É triste dizê-lo, mas neste país opta-se sempre pela solução mais fácil. Qualquer jovem que tenha rezado a ave-maria e o pai-nosso do empreendedorismo descortina aqui uma oportunidade única para pôr a aldeia na rota dos amantes das Festas Bravas. E desde logo com uma evidente vantagem competitiva: enquanto nos outros locais as garraiadas, touradas, largadas e afins são realizadas em datas específicas, em Segura aconteceriam todo o ano, a qualquer momento, de uma forma selvagem, o que lhes daria um cunho bem mais autêntico. Se o presidente da Junta de Freguesia assim o desejar, posso ir eu mesmo levantar uma placa à entrada da aldeia com o seguinte enunciado: “Bem-vindos a Segura. A terra onde San Fermín é quando um touro quiser”. E assim se matavam dois coelhos de uma cajadada só: mantinham-se os animais vivos e fazia-se uma chicuelina à crise.

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