Icebergue – o fim do silêncio

Acaba de chegar o icebergue que, alegadamente, afundou o Titanic no início do século passado. Vem dentro de uma arca frigorífica da Ariston com capacidade para três mil litros e ladeado por dois pinguins imperadores que trajam o já habitual smoking preto e branco. A arca frigorífica parou neste momento à entrada do estúdio onde se vai realizar a entrevista que marca o fim do silêncio do icebergue, 101 anos após a tragédia do Titanic. No interior, a temperatura ronda os 25 graus negativos para que não se dê o caso de o icebergue derreter antes de explicar o que aconteceu ao certo na noite do naufrágio do Titanic. Por essa razão, o nosso colega que vai conduzir a entrevista, José Brito, enverga hoje um casaco de camurça de tom beije a condizer com a sua gravata ocre com riscas diagonais amarelo tostadas.

Há neste momento um compasso... Um compasso de espera, evidentemente, para que os pinguins destranquem a arca frigorífica... Bom, parece que estão com algumas dificuldades devido ao tamanho diminuto das suas barbatanas em relação às trancas... Parece que está complicado... Aproveito este momento para relembrar aos nossos telespectadores[1] que esta é a primeira entrevista que o icebergue concede à comunicação social desde que o Titanic, alegadamente, chocou contra si no ano de 1912. O naufrágio provocou a morte a 1523 passageiros que atravessavam o Oceano Atlântico em direcção a Nova Iorque. Essa era a viagem inaugural do Titanic, cuja construção demorou três anos, estando a cargo dos estaleiros navais Haarland and Wolff, de Belfast, na Irlanda do Norte. A imprensa da época considerava o Titanic como uma fortaleza inexpugnável, capaz de resistir a qualquer intempérie, no entanto, acabou por ser engolido pelas águas geladas do Atlântico na sua viagem inaugural. Recordo igualmente aos nossos telespectadores que o Titanic saiu do porto de Southampton no dia... Só um segundo para ver nas minhas notas o dia de partida… Cá está: partiu no dia 10 de Abril de 1912 de Southampton, em Inglaterra, com mais de duas mil pessoas a bordo. A grande maioria levava na mala a esperança de começar uma vida nova no então denominado Mundo Novo, ou melhor, no Novo Mundo. A tragédia do Titanic provocou uma forte comoção na sociedade inglesa e desde então tem sido retratada por múltiplos artistas. A mais popular e mediática reconstituição do naufrágio terá sido o filme Titanic, realizado por James Cameron e que contou no elenco com os actores Leonardo DiCaprio e Kate Winslet. Ele pertencia à classe operária enquanto ela integrava a mais fina-flor da aristocracia inglesa. Apesar de terem pouco ou nada em comum, os caminhos de ambos acabam por... E o icebergue sai neste preciso momento da arca frigorífica e pisa o chão dos nossos estúdios precisamente às... precisamente às vinte e uma horas e trinta e sete minutos. Tem vestido um fato integralmente branco e uma gravata também branca que me parece de algodão com um nó... Vou tentar aproximar-me mais um pouco... Exacto, a gravata tem um nó meio Windsor que condiz bastante bem com a alvura dos sapatos de couro branco. O icebergue avança agora para o estúdio e neste momento pára e sorri com um sorriso imaculadamente branco para os fotógrafos e agora acena para as câmaras que o acompanham a par e passo. Atenção que no momento em que o icebergue acenou com o seu braço esquerdo foi visível no pulso desse mesmo braço, portanto o esquerdo, uma pulseira de plástico vermelha que me parecia ter escrito LiveStrong, numa alusão ao ciclista Lance Armstrong que venceu sete etapas do Tour que, no entanto, acabaram por ser retiradas devido à confissão do próprio de que usou substância ilegais ao longo da sua carreira. Será que o icebergue não está a par do escândalo de doping que arruinou a carreira do ciclista norte-americano? É uma questão que poderá eventualmente ser colocada ao longo da entrevista que vai começar dentro de momentos e que marca o fim do silêncio do icebergue que se prolonga, volto a lembrar, desde o naufrágio do Titanic. Se nos permitem, trata-se de um silêncio de gelo, visto que a morada do icebergue fica localizada no Atlântico Norte, zona onde tradicionalmente as temperaturas andam abaixo dos zero graus centígrados. A este propósito, convém lembrar ao telespectador que as pessoas que convivem mais de perto com o icebergue caracterizam-no como uma imensa massa de gelo que está maioritariamente escondida debaixo de água, o que é sem dúvida revelador da sua personalidade. Esperemos, portanto, que a entrevista que vai agora mesmo começar não revele apenas a já revelada ponta do icebergue no que ao naufrágio do Titanic diz respeito. Vamos então assistir à entrevista... O icebergue traça neste momento a perna e endireita as costas na cadeira impermeável especialmente elaborada para esta noite histórica. A emissão fica agora a cargo do meu colega José Brito.

Entrevistador: Muito boa noite. Está na hora de quebrar o silêncio. O icebergue volta a aparecer em público 101 anos após o naufrágio do Titanic. Boa noite icebergue. Obrigado por ter aceitado o nosso convite para estar aqui hoje.

Icebergue: Eu é que agradeço a gentileza do vosso convite.

Entrevistador: Desde a semana passada que muita gente tem perguntado porque é que aceitou dar esta entrevista neste momento, após tantos anos de silêncio.

Icebergue: Bom, em primeiro lugar porque há um momento para tudo na vida. Há um momento para estar em silêncio e um momento para tomar a palavra. Durante estes anos afastei-me da vida pública e mantive-me em silêncio para que fosse apurada a verdade dos factos relativos ao naufrágio do Titanic. Tomei esta decisão para evitar causar qualquer tipo de constrangimento a quem quer que fosse. Muitos anos passaram desde esse dia, mais precisamente 101 anos, e agora decidi que este é o momento de tomar a palavra, de me defender de muitas das acusações que me têm sido feitas e de fazer uma análise distanciada do que aconteceu na noite do naufrágio. Na verdade, aquilo a que tenho assistido nestes últimos anos é à construção de uma narrativa única cheia de embustes e sem contraditório, o que tem conduzido a um evidente empobrecimento do debate público. Por isso, através da minha opinião quero contribuir para uma maior diversidade do debate e, por outro lado, desmontar muitos dos embustes criados ao longo de todo estes anos contra a minha pessoa.

Entrevistador: Com este seu reaparecimento não está portanto a pensar tornar-se numa ilha tropical cheia de cocos e trocar o Atlântico Norte pelas Caraíbas?

Icebergue: Não estou a pensar e nem quero. Antes de mais porque a água de coco deixa-me o gelo cheio de manchas. Penso que se trata de alergia ao fruto. Mas respondendo directamente à sua questão: não, não estou a pensar em fazer o tirocínio para me transformar numa ilha tropical, pelo que recuso esse tipo de especulação. Além disso, essa ideia de que tudo o que os icebergues fazem tem por detrás uma agenda própria, ou seja, segundas intenções, um plano que não quer revelar, é uma ideia perniciosa que em nada contribui para um debate que se quer sério e livre de ataques pessoais. Se ainda estivéssemos a falar dos cubos de gelos, verdadeiros boys da água congelada, cujo objectivo de vida é terminarem num cocktail de uma predadora noctívaga e, com sorte, na sua língua bamboleante, quando não nos seus seios carnudos e saltitões que parecem...

Entrevistador: ...bom, acho que ficou claro o seu ponto de vista. Vamos então avançar. Reconhece alguma responsabilidade no naufrágio do Titanic?

Icebergue: Não, não reconheço. Sabe, José Brito, é muito fácil atirarem-me as culpas para cima em relação a tudo o que de mau aconteceu no Titanic. Culpam-me de que fui responsável por uma tragédia sem precedentes na história da navegação. Mas a verdade é que ao dizerem isso esquecem-se que…

Entrevistador: … mas não nega que nessa noite morreram milhares de pessoas após o Titanic ter colidido contra o senhor. Colisão essa que rasgou o casco do barco, provocando o seu afundamento em pouco mais de duas horas.

Icebergue: Desculpe, mas o senhor está apenas a dar eco à narrativa que tem sido veiculada ao longo dos anos pelos…

Entrevistador: … não se trata de uma narrativa. Há provas concretas que demonstram que o barco chocou de facto contra o senhor, colisão essa que provocou o seu naufrágio e a consequente morte dos passageiros.

Icebergue: Oh José Brito! Se me permite eu gostava de poder responder às questões que me coloca sem estar a ser permanentemente interrompido. Isso que me disse não é mais que uma narrativa cheia de embustes que os ditos especialistas navais e, lamento dizer-lhe, muita da comunicação social, têm replicado ao longo deste últimos anos até se cristalizar numa verdade única, passivamente aceite por toda a gente. Quando fala no rasgo do Titanic, esquece-se que…

Entrevistador: … nega portanto qualquer tipo de responsabilidade no naufrágio do Titanic.

Icebergue: Oh homem, já lhe disse que sim! Se me permite eu gostava de lhe poder responder às questões de forma calma e ponderada, sem estar sempre a ser interrompido. Caso contrário prefiro ir dar comida aos ursos polares e observar as marinheiras que passam a meu largo, com os seios rijos por causa do frio, qual bolas de gelado que…

Entrevistador: … qual é então a sua quota de responsabilidade no naufrágio do Titanic?

Icebergue: Portanto, nesse ano…

Entrevistador: …ano de 1912.

Icebergue: …ano de 1912, tinha eu 15 anos de idade. E lembro-me perfeitamente que nessa noite…

Entrevistador: … noite do naufrágio.

Icebergue: … noite do naufrágio, estava eu a brincar ao mar escuro…

Entrevistador: Mar que neste caso funciona como uma sinédoque, uma vez que se está a exprimir o todo por uma parte, neste caso o Oceano Atlântico pelo mar.

Icebergue: … pois, exacto. Estávamos nós a brincar ao mar escuro quando vejo um grande aglomerado de luzes a vir na minha direcção. E eu pensei para mim: olha, deve ser a galdéria da Rosária que quer outra vez festa.

Entrevistador: Quem é a Rosária?

Icebergue: Era a nossa colega do 10º C que tinha muita saída lá na escola. E já agora, se me permite fazer um parêntesis à nossa conversa, gostava de mencionar que a Rosário faleceu recentemente…

Entrevistador: … apanhou um resfriado?

Icebergue: … não. Morreu desfeita numa poça de água devido ao efeito estufa provocado pelo vosso comportamento ambientalmente irresponsável. Nos últimos dias de vida, a Rosária estava mais bronzeada do que uma argelina. Antes de falecer começou mesmo a vender rosas e gerberas aos ursos polares e a dar cuscuz aos pinguins. Mas claro que disto já ninguém fala. Não interessa à vossa narrativa de sentido único, não é?

Entrevistador: Bom, mas voltando à vaca fria…

Icebergue: … oiça, eu não lhe admito que diga isso da Rosária. Lá porque ela gostava de experimentar com…

Entrevistador: … desculpe, mas não me fiz entender. Estava a referir-me ao assunto que nos trouxe aqui hoje, o Titanic.

Icebergue: Ah, exacto. Portanto, eu pensava que era a Rosária que vinha na minha direcção, por isso fiquei logo com as partes baixas intumescidas. Quando reparo que se tratava do Titanic foi tarde de mais para me desintumescer, se é que me percebe. Portanto, o barco roçou-se prazenteiramente pelo meu pénis, qual cão a esfregar-se na relva. Além do gozo que me deu, deixou-me com uma circuncisão que nem o Abraão nem a descendência dele alguma vez tiveram.

Entrevistador: Portanto o Titanic foi ao fundo por causa da sua excitação.

Icebergue: Não, isso faz parte da narrativa que foi construída ao longo dos últimos anos. As pessoas esquecem-se que o tempo tinha mudado. Sim, o tempo tinha mudado. Não havia lua nessa noite, o que dificultava a visibilidade. Além disso, o barco não se fez anunciar, limitou-se a aparecer e depois é ele que vai contra mim e não eu contra o barco. Para quem jogou basket sabe que eu estando parado não posso cometer falta.

Entrevistador: Mas no futebol é considerado obstrução.

Icebergue: Sim, mas a FIFA já analisou o movimento e considerou que foi o Titanic que simulou claramente o naufrágio.

Entrevista: Portanto não admite qualquer responsabilidade no naufrágio do Titanic.

Icebergue: Já lhe disse que não, homem! Escusa de bater sempre na mesma tecla! Não é por repetir sempre a mesma coisa que a realidade se vai transformar na narrativa que nos quer impor! O rombo do Titanic foi provocado pela mudança do tempo e, em segundo lugar, pela incúria dos seus tripulantes que não souberam avisar atempadamente que iam passar ali. Atitude essa que eu sempre considerei de uma deslealdade sem precedentes na história da navegação.

Entrevistador: O dono da companhia de navegação White Star Line, Joseph Bruce Ismay, disse o mesmo de si.

Icebergue: Ouça, eu não recebo lições de lealdade desse senhor. Basta referir a maneira como abandonou o barco quando…

Entrevistador: A verdade é que ele escreveu na parte de trás de um guardanapo que utilizou durante um jantar na casa de pasto “The sinking”, em Chester City, que o icebergue, e passo a citar, “demonstrou um total desprezo pela vida das pessoas que gritavam desesperadas a seus pés, comportamento que demonstra bem a sua frieza e falta de escrúpulos”.

Icebergue: Bom, passando já por cima do comportamento dessa pessoa, que faz essa acusação cinco anos após o naufrágio, devo-lhe dizer que essa história está muito mal contada. Ou melhor, está contada da maneira que interessa aos autores da narrativa única. Após o primeiro rombo no Titanic, eu propus imediatamente um segundo rombo no lado contrário ao do primeiro para que o barco se pudesse equilibrar. No entanto, esta solução foi de imediato recusada, com o argumento de que isso faria entrar mais água. A solução, dizia ele, era pedir ajuda externa, ou seja, contactar outros barcos nas imediações para que resgatassem os passageiros. Ora sabia-se que o barco mais perto…

Entrevistador: …o Carpathia

Icebergue: … o Carpathia, estava a mais de quatro horas de distância, o que impossibilitaria resgatar a maioria das pessoas. À distância de 101 anos, parece-me que essa solução foi errada. Aliás basta ver no que é que ela redundou.

Entrevistador: Quem é que lhe garante que a solução do segundo rombo teria salvado o Titanic?

Icebergue: Garante-me o apoio incondicional que imediatamente recebi dos ursos polares e da Rosária que tinha ficado bastante impressionada com o meu desempenho no primeiro rombo.

Entrevistador: Bom, o nosso tempo está a chegar ao fim. Sabemos que ultimamente o icebergue esteve na Islândia a aprender patinagem artística. Porque é que decidiu aprender patinagem artística?

Icebergue: Era um sonho que tinha já há alguns anos. Mas deixe-me que lhe diga a este propósito que a comunicação social.... a comunicação social não… É preciso chamar os bois pelos nomes. O Pasquim da Manhã tem publicado notícias totalmente falsas a esse respeito. Dizem que apenas entrei para a escola à terceira tentativa, o que não é verdade. Além disso, escreveram que eu levo uma vida de luxo, frequentando diariamente saunas que têm contribuído para o meu degelo e, consequentemente, para o aumento do nível médio das águas do mar. Devo dizer que…

Entrevistador: … como é que tem conseguido manter-se na Islândia?

Icebergue: Pois era exactamente isso que eu ia explicar se me tivesse deixado concluir o meu raciocínio, José Brito. Como sabe, vivo no Atlântico Norte, o que permite ter uma relação de grande proximidade com o Pai Natal. Por isso, quando decidi fazer o curso, fui à casa dele…

Entrevistador: … dele, do Pai Natal.

Icebergue: Sim, do Pai Natal. Fui à casa dele, na Lapónia, e disse-lhe que queria fazer o curso, o que mereceu de imediato o seu aval. Como bom amigo que é, intercedeu por mim junto da escola…

Entrevistador: … da escola de patinagem artística.

Icebergue: Sim, da escola de patinagem artística. Intercedeu por mim para que me aceitassem sem qualquer pré-requisito e me pagassem todas as minhas despesas. Caso contrário, não haveria nenhuma prenda para as crianças islandesas no próximo Natal e…

Entrevistador: … desculpe. Toda a gente sabe que o FMI já cortou nas prendas às crianças islandesas de há dois anos a esta parte. Portanto, essa chantagem nunca funcionaria.

Icebergue: Tem razão, sim senhor. Na verdade para ter acesso às aulas tive de autorizar a construção de um outlet islandês no Pólo Norte com néones roxos…

Entrevistador: E foi a entrevista com o Icebergue. Não perca já a seguir a emissão especial de 15 horas em que esta entrevista vai ser analisada por um vasto leque de políticos experimentados a afundar países inteiros. Sim, porque isto do Titanic foi para meninos.
  

[1] O que se segue nos próximos momentos é o que se designa na comunicação social pelo nome de “engonhar”, arte em que o jornalista enche chouriços até se dar um acontecimento de alguma relevância. Esta técnica é muito popular em Portugal. Se o leitor preferir, pode saltar imediatamente para a entrevista para não ser aborrecido de morte pelas linhas que se seguem. Considere-se avisado.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Sai um prato de tofu com ovo a cavalo

Desculpe, mas não me lembro

A ditadura do cliente Pingo Doce