As princesas prejudicam gravemente a saúde

Durante toda a minha infância ouvi histórias de príncipes que tiveram de matar dragões, lutar contra cavaleiros e enfrentar bruxas para conseguirem, enfim, ter a sua recompensa – a princesa. A trama narrativa era sempre a mesma. Havia um príncipe que punha em perigo a sua vida e uma princesa refastelada numa torre ou a dormir confortavelmente numa cama de dossel. Eles eram destemidos e façanhudos; elas frágeis e dondocas. Sempre achei que a repartição de tarefas nas histórias infantis não era equitativa e que, de quando em quando, o príncipe também deveria ter direito a tirar meia hora de sesta, enquanto a princesa, devidamente empoderada, ia combater uns seres maléficos. Mesmo sem o saber, sentia já a falta de uma Isabel Moreira que pugnasse pela igualdade de género nas histórias da minha meninice.

Parece que finalmente a minha revolta silenciosa evoluiu para uma polémica ruidosa. Se não fosse a minha falta de perspicácia, teria facilmente percebido que, no que concerne a histórias infantis, o rastilho seria não o último filme da Disney, mas sim a última campanha antitabágica da Direcção-Geral da Saúde intitulada “Opte por Amar mais”. Os 16 minutos de filme contam a história de uma mãe com cancro do pulmão por causa do tabaco. Está acamada e tem de usar uma botija de oxigénio. Não consegue, contudo, deixar de fumar, apesar dos apelos recriminatórios do marido. Já a filha do casal, com uma tiara sobre a cabeça, mimetiza-lhe os gestos de fumadora. Até aqui tudo normal. Estamos perante uma cena familiar perfeitamente banal. Quem nunca viveu uma situação semelhante nos seus lares, que se acuse. O verdadeiro choque que assanhou parte da opinião pública acontece quando a mãe pede à filha que seja sempre a sua princesa, acrescentando logo a seguir que uma princesa não fuma. Neste ponto, é impossível o telespectador não se sentir revoltado com aquela cena. As questões angustiantes que lhe surgem em catadupa são, no fundo, o cerne desta campanha antitabágica: com que descaramento uma mãe chama princesa a uma filha? Será que deseja mesmo que ela seja raptada por um dragão e passe anos a fio à espera que o príncipe encantado a venha salvar? Onde está a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens quando é necessária?

A fracturante Isabel Moreira não perdeu tempo a classificar a campanha de inadmissível, misógina e culpabilizante das mulheres. E, como corolário, exigiu, democraticamente, que seja retirada. Já os bloquistas consideraram que ela incorre numa simplificação perigosa, porque considera que deixar de fumar é apenas, espante-se, uma questão de vontade. De facto, tenho de dar a mão à palmatória. Quem decide começar a fumar não tem de se sentir culpado por isso, sobretudo se for mulher, e muito menos deve fazer qualquer esforço no sentido de deixar o vício. Muito provavelmente é essa a razão que explica porque é que as caixas dos maços de tabaco têm campanhas de dissuasão tão suaves, com imagens e mensagens que nunca responsabilizam quem fuma. Seguindo a mesma lógica, quem come fast food todos os dias não deve em qualquer momento sentir-se culpado por estar a pesar 150kg. E nunca deverá pensar em trocar os hambúrgueres por verduras, porque assim estaria a reduzir o esforço para perder peso a uma simples questão de vontade.

Por sua vez, Catarina Correia, vice-presidente da Rede Portuguesa de Jovens para a Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens, lançou a pergunta que se impõe: “Por que é que não se optou por mostrar que uma mulher forte, empoderada, não fuma?” É uma excelente ideia. Para sensibilizar as mulheres para os riscos do tabaco, o filme só teria a ganhar se a mãe entrasse em casa com uma saca de cimento sobre o ombro depois de um dia passado nas obras. Já a filha surgiria de fato-macaco a substituir as pastilhas dos travões do carro. “Miúda, vê lá se mudas isso como deve ser, estás a ouvir?”, diria a mãe. “No outro dia o teu pai ia-se espetando com o carro numa curva. E nunca te esqueças: as mecânicas fortes e empoderadas não fumam, percebeste? Isso são hábitos de princesas.”

Tenho pena que todos estes movimentos e associações, sempre à cata da próxima indignação, não tenham surgido há mais tempo. As histórias infantis seriam claramente melhores do que são. Provavelmente, Hans Christian Andersen teria dado outro empoderamento à Pequena Sereia e a Gata Borralheira teria mais poder reivindicativo junto das irmãs. Por sua vez, os príncipes deixariam de arriscar a pele para salvar as princesas, porque estas entretanto se tinham tornado feministas autónomas, fortes e indignadas (passe a redundância). Além disso, mais do que dos dragões, feiticeiros ou bruxas, teriam medo de virem a ser acusados de ninfomaníacos machistas e misóginos caso as tentassem salvar. Se é para isso, mais vale ficarem sossegados nos seus palácios a praticar esgrima.

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