A arte trovadoresca dos falsos recibos verdes

A figura do falso recibo verde é uma óbvia recriação contemporânea dos trovadores medievais. Foi plasmada pelo patronato mais dado ao lirismo, esses grandes suseranos dos tempos modernos. A relação é tão evidente que não percebo como é que os estudiosos da literatura portuguesa ainda não deram por ela.

Analisemos então os argumentos que sustentam a minha tese. O trovador do século XII cantava o seu amor superlativo, e tantas vezes inglório, à dama, que se mantinha distante e indiferente à coita daquele, nunca lhe dando um beijo que fosse. O falso recibo verde do século XXI submete-se a oito ou mais horas de trabalho, cumpre ordens, ouve responsos azedos, e tantas vezes injustos, e não consegue agradar ao patrão, que se mantém alheado do estado precário daquele, nunca lhe concedendo a esperança de um dia assinar contrato, por mais ténue que seja.

Nas suas trovas, o segrel cantava um amor não correspondido. Era um vassalo dos humores da senhora, cuja frieza marmórea o privava da felicidade e do desejo de viver. Na mesa do bar, junto dos amigos, o falso recibo verde versa sobre um trabalho que não corresponde às suas expectativas. É um súbdito dos ditames do patrão, cuja soberba mesquinha o despoja dos direitos laborais consagrados na lei e da independência antes dos quarenta.

O trovador saltitava de palácio em palácio, de castelo em castelo, derramando em versos a sua coita amorosa. O falso recibo verde erra de trabalho em trabalho, de escritório em escritório, vertendo em euros a sua coita pecuniária no final de cada mês.
                                                                                                
Quando a senhora trocava um olhar mais insinuante com o trovador, o coração deste renascia na esperança de lhe tocar na mão, mesmo que por breves instantes. Mas logo a ilusão se desvanecia quando aquela o voltava a ignorar ostensivamente. Quando o patrão chama o falso recibo verde ao seu gabinete, o coração deste palpita perante a esperança de assinar contrato, mesmo que seja com a duração de apenas três meses. Mas logo a ilusão esmorece quando aquele o convida somente para o jantar de Natal da empresa.

É por tudo isto que eu tenho para mim que no Governo há grandes amantes da medieval arte trovadoresca. Só assim se entende a decisão de aumentar para dois anos o tempo de descontos necessário para os trabalhadores independentes terem direito ao subsídio de desemprego. “Se eu pudesse desamar / A quem me sempre desamou, / E pudesse algum mal buscar / A quem sempre mal buscou!”, escreveu, no século XIII, e em jeito de desabafo, Pedro da Ponte perante o desprezo da sua amada. “Se eu pudesse explorar / A quem me sempre explorou, / E pudesse algum mal causar / A quem sempre mal governou!”, versejará, no século XXI, e em jeito escarnecedor, algum falso recibo verde mais dado ao lirismo perante as medidas que o atolam na condição de precário.

No fundo, a decisão do Governo faz eco da lírica camoniana, porque ser falso recibo verde é, evidentemente, “ter com quem nos mata lealdade”. Refira-se que Luís de Camões foi um felizardo por ter vivido algures no século XVI, o que lhe permite fazer um manguito além-túmulo a todo os que têm de levar com os recibos verdes no século XXI. Enfim, pessoas com sorte.

Se o acaso, no entanto, tivesse querido que fosse este o seu tempo, provavelmente seria bastante diferente a cantiga da sua autoria cujo mote é “Verdes são os campos / de cor do limão: assi são os olhos do meu coração”. Arrojo-me a apresentar uma sugestão do que teria escrito Luís de Camões:

Cantiga a este mote alheio:

Verdes são os recibos
de cor do limão:
assi são os dias
da minha exploração

Voltas

Recibo, que te estendes
com verdura bela;
precários, que nela
vosso salário tendes;
de tostões vos mantendes
que vos paga o patrão,
e eu das saudades
de um contrato de longa duração

Falsos recibos verdes, que viveis
com descontentamento,
vosso pagamento
não no entendeis:
isso que recebeis
não é muito não:
são os trocos dos bolsos
do vosso patrão

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